AS IMPLICAÇÕES DO SISTEMA NORTE-AMERICANO
DE DEFESA ANTI-MISSIL PARA A EUROPA
Contextualização Histórica
A época da Guerra Fria foi aquela em que se investiu mais na área da defesa e do armamento. Foi aqui que começou a ideia de desenvolver sistemas anti-mísseis capazes de proteger o país de um ataque inimigo com Misseis Balísticos. Em 1950 os Estados Unidos desenvolveram o programa Nike-Zeus para interceptar ICBM's (Intercontinental Balistic Misseles) Soviéticos. Mais tarde, em 1963, o Secretário da defesa norte-americano, Robert McNamara, sugeriu a implementação do Sentinel Program, que conseguiria proteger praticamente todo o território americano. Porém, mais tarde, em 1967, o mesmo McNamara anunciou o Safeguard Program, uma versão menos sofisticada do Sentinel Program. O Safeguard Program tinha inicialmente como objectivo proteger algumas cidades norte americanas. Mais tarde, o seu propósito foi reformulado para a protecção dos sistemas de mísseis norte-americanos de modo a permitir um contra-ataque.
A 23 de Março de 1983 o Presidente Reagan anunciou aquela que foi a proposta mais ambiciosa até aos dias de hoje em matéria de sistemas anti-mísseis. Formalmente, este programa chamava-se Strategic Defense Initiative (SDI), porém, cedo foi apelidada de “Guerra das Estrelas”. O objectivo deste sistema era proteger não só os Estados Unidos mas também todos os seus aliados. Através de uma forma estratégica de defesa, o SDI pretendia acabar com a doutrina da Destruição Mútua Assegurada (MAD na sigla original) que o Presidente Reagan classificava como “suicida”. Porém, alguns dos seus críticos afirmaram que iriam encorajar a militarização do espaço. Foi também classificado por estas vozes críticas como demasiado ambicioso e tecnologicamente inviável. Embora ele nunca tenha sido realizado na sua totalidade, as pesquisas realizadas para o SDI abriram caminho para algumas das componentes de sistemas anti-mísseis de que dispomos actualmente.
Nos anos 90 os Estados Unidos deixaram de tentar criar um sistemas anti-mísseis que os protege-se de ataques sofisticados, para investir em sistemas mais modestos apenas eficazes em caso de ataques moderados por parte de “Estados Pária” e de grupos terroristas. A administração Clinton que pretendia a criação de sistema de defesa compatível com o Tratado ABM e reiterou a necessidade de uma interpretação literal desse Tratado.
A Doutrina MAD e os Tratados de Redução de Armamento Estratégio
No que diz respeito à doutrina da Destruição Mútua Assegurada, que se insere na Teoria da Intimidação, ela baseava-se na premissa de que nenhum Estado atacaria primeiro pois a resposta do opositor levaria à destruição de ambos. Realmente esta doutrina assegurava a paz mas uma paz muito tensa. Foi utilizada durante a Guerra Fria e conseguiu evitar um conflito directo entre os dois blocos, porém à custa de guerras proxy de menor dimensão em várias regiões do mundo.
No que diz respeito aos Tratados de Não Proliferação (TNP), em 1972 foi assinado o Tratado ABM (Anti-Balístic Missil System) depois revisto em 1974 entre os Estados Unidos e a União Sovietica. Este tratado proíbe o desenvolvimento, teste ou posicionamento de um sistema de defesa nacional marítimo, aéreo, ou móvel terrestre contra ataques de mísseis balísticos estratégicos. Em 1974, os dois signatários do tratado concordaram que cada um deles teria permissão para manter uma área de posicionamento de ABM. Embora a Rússia continue a manter uma defesa ABM para Moscovo, os Estados Unidos desactivaram a sua em 1976 após usá-la por pouco tempo para defender a sua área de lançamento de mísseis balísticos intercontinentais no Dakota .
O Tratado ABM foi a base para outros acordo sobre o controlo de armamento tais como o SALT I, assinado em 1972 que previa a limitação das armas estratégicas dos Estados Unidos e da URSS e a assinatura do SALT II em 1979, que era uma prorrogação das negociações do SALT I. Em 1987 foi assinado, também entre os Estados Unidos e a União Sovietica o Tratado INF (Intermediate-Range Nuclear Forces Treaty). Em 1991 entrou em vigor o START I (Strategic Arms Reduction Treaty), cujas negociações tinham sido iniciadas em 1983 e em 1993 entrou em vigor o START II. O Tratado ABM foi a base de tratados de não proliferação de armas nucleares, redução de forças convencionais e armamento. Porém, em Junho de 2002 os Estados Unidos decidiram abandonar o Tratado ABM e um dia depois a Russia abandonou o START II. A administração Bush afirmou que o Tratado ABM os impedia de desenvolver um sistema capaz de proteger efectivamente os Estados Unidos.
Actualmente, o objectivo do National Missile Defense continua a ser desenvolver um sistema que proteja os Estados Unidos contra ataques de misseis balísticos. Os grandes receios dos Estados Unidos centram-se sobretudo em disparos acidentais ou não autorizados e na ameaça que os Estados Pária representam. Embora estejamos a falar de um sistema altamente sofisticado, são-lhe apontadas algumas graves falhas, senda a mais significativa a de apenas ser eficiente para misseis de longo alcance.
O Funcionamento do Sistema de Defesa
O BMDS que está a ser concebido neste momento tem a vista a possibilidade de destruição do míssil numa das suas 3 fases. A fase inicial (boost phase) é muito breve, o que faz com que só seja possível neutralizar o míssil nesta fase caso a resposta seja extraordinariamente rápida. Porém, a destruição do míssil nesta fase apresenta múltiplas vantagens, tais a de ser possível destruir o míssil por inteiro. A segunda fase (midcourse phase) é mais longa, o que faz com que existam mais oportunidades para abater o míssil. Porém, é nesta fase que são accionadas as medidas para tentar despistar o sistema anti-míssil, tais como o uso de decoys. Caso se pretenda abater o míssil na sua última fase (terminal phase) é necessário ter a certeza que a intercepção se dá a uma distância significativa do alvo do míssil, de forma a que este não seja acidentalmente danificado.
Muitos críticos afirmam que este é um sistema muito caro e pouco eficaz, visto não poder proteger contra ataques de misseis de curta ou media distância. É também um sistema passível de aumentar a desconfiança entre os Estados e provocar uma nova corrida armamentista. Para além do mais, é questionável se os Estados Unidos irão enfrentar qualquer ameaça deste genéro a médio prazo. Foi tudo isto que levou Maureen Dowd a fazer a seguinte afirmação acerca do NMD: “Defense that doesn't work against a threat that doesn't exist”.
O Papel dos Estados Unidos
A Perspectiva Norte-Americana
Os Estados Unidos afirmam que, actualmente, os regimes políticos mais perigosos e imprevisíveis do globo possuem, ou planeiam possuir em breve, armas de destruição massiva. Armas estas progressivamente mais mortais e sofisticadas. Perante esta conjuntura, a ameaça de mísseis balísticos que hoje se apresenta pelas mãos deste estados hostis é profundamente diferente da ameaça vivida durante a Guerra Fria e que o ambiente de segurança internacional é hoje exponencialmente mais complexo e imprevisível do que era aquando da queda do Muro de Berlim (1989) e do colapso da União Soviética (1991). É no seguimento desta referida alteração de cenário que os norte-americanos definem a sua defesa por via de mísseis como apenas um elemento de uma abordagem estratégica multifacetada que contém igualmente: diplomacia, controlo de exportações, assistência de redução às ameaças e programas de não proliferação. A defesa anti-míssil é assim descrita como o último recurso caso todos os recursos supra referidos não gerem resultados e será apenas utilizada por via meramente defensiva e nunca num contexto de agressividade.
A Importância da Europa e os Casos Particulares da Polónia e República Checa
É convicção americana que, num mundo gradualmente mais afectado pela crescente ameaça bélica por parte de novos actores no plano das relações internacionais, é necessário protegerem não apenas o seu território interno mas também o território dos seus amigos e aliados. A segurança transatlântica é, na visão norte-americana, indivisível pois se a Europa não estiver segura, os Estados Unidos também não estarão. Para assegurar a segurança de ambos os lados do Atlântico é necessário que as defesas necessárias para garantir a referida segurança mútua esteja sedeada e operacional em solo europeu antes que uma potencial ameaça se manifeste. É sobre estes pressupostos que os Estados Unidos pretendem colocar dez mísseis de longo alcance na Polónia e um radar na República Checa.
A intenção americana de estabelecer uma parte da sua estratégia de defesa anti-míssil na Polónia e República Checa tem levantado intensas objecções por toda a Europa. Esta inquietação de muitos Estados Europeus pode ser analisada segundo alguns pontos chaves como as repercurssões nas relações Europa-Rússia, qual a extensão da ameaça proveniente do Irão e qual o papel concreto dos europeus e da NATO na área em questão.
Não obstante as críticas, os Estados Unidos justificam a escolha destes dois países como os receptores do NMD (National Missile Defense) na Europa através de diversos pontos. Primeiramente, os mísseis interceptores previamente estabelecidos no Alaska e Califórnia não possibilitam a protecção da Europa. Numa análise aprofundada a ambos os países em análise, tanto a Polónia como a República Checa demonstram ser localizações primordiais pois permitem, por um lado, uma maior cobertura de área e, consequentemente, uma maior defesa do continente europeu em caso de um ataque com míssil balístico de longo alcance proveniente do Médio Oriente e, por outro lado, conferem também uma protecção adicional ao território norte-americano no caso de algum Estado do Médio Oriente lançar ICBMs à referida área geográfica. Em conclusão, o estabelecimento de dez mísseis interceptores na Polónia – que os Estados Unidos apresentam como meramente defensivos – e de um radar na República Checa – que se encontra actualmente nas Ilhas Marshall (centro do Oceano Pacifico) – permitirá maximizar a defesa tanto do território europeu como do território americano.
A Ameaça do Médio Oriente – Irão e Coreia do Norte
Os Estados Unidos têm na sua apreensão para com o desenvolvimento de mísseis balísticos e programas de testes sobre os mesmos levados a cabo pelo Irão e Coreia do Norte, dentro das suas actividade actuais de proliferação nuclear, como um dos principais argumentos para a criação e manutenção de um sistema de defesa anti-míssil na Europa. A Defense Intelligence Agency (DIA) explicitou publicamente no início de 2007 a existência de programas ambiciosos de desenvolvimento de mísseis balísticos por parte da Coreia do Norte e a exportação de mísseis e tecnologia bélica para outros países, incluindo o Irão. O Irão por seu lado, além do apoio Norte Coreano para o desenvolvimento dos seus próprios programas de mísseis, conta ainda com a assistência da Rússia e da China para os mesmos efeitos.
A provar-se a capacidade efectiva do Irão possuir e utilizar mísseis balísticos, estes atingiriam, se lançados, partes do sudeste e centro europeu, Turquia, Israel e bases militares americanas no Golfo Pérsico. Estima-se também que antes de 2015 o Irão seja capaz de desenvolver ICBM’s que atingirão tanto o território norte-americano como todas as regiões europeias. É no seguimento deste aumento de poderio bélico que os Estados Unidos vêem um sistema de defesa anti-mísseis sedeado na Europa como uma clara capacidade de resposta a um possível ataque proveniente do Médio Oriente e assim contornar a possibilidade de serem apanhados desprevenidos em relação a um ataque dos referidos países.
NATO – Aliado Real ou Mero Espectador?
As vozes dissidentes e críticas sobre o efeito de mísseis de cariz puramente americano em solo europeu e afectando países membros da NATO sem a Organização ter uma palavra decisiva na matéria. Em resposta a estas críticas, os Estados Unidos promovem uma retórica de cooperação e entendimento entre os seus planos militares e as directrizes da NATO chegando mesmo a afirmar o total aval da organização em relação aos seus planos de defesa anti-míssil. Assente nesta lógica são estipulados uma série de benefícios resultantes da presença do Sistema Anti-Míssil Americano na Europa e em particular para a NATO.
Em primeiro lugar, a possibilidade de estender o raio de protecção defensivo europeu contra mísseis balísticos de longo alcance, melhoraria a segurança colectiva da aliança e consequentemente fortaleceria a unidade transatlântica e ainda um reafirmar do compromisso americano para com a segurança do continente europeu. Em segundo lugar, esta seria uma excelente oportunidade para partilhar tecnologia e poupar nos custos económicos dos próprios programas defensivos da NATO. Em terceiro lugar, a possibilidade da organização poder utilizar a infra-estrutura do sensor norte-americano num futuro sistema defensivo da própria NATO para proteger população e território. Em último lugar, cria-se uma rede de partilha de informações em torno dos países dos países envolvidos no processo.
Posição Americana Perante a Rússia
É explícito o cuidado, por parte dos Estados Unidos, em deixar claro que o Sistema Anti-Míssil que estes pretendem instalar na Europa não pretende, nem nunca pretenderá, ser uma ameaça para a Rússia. No âmbito desta clarificação e tentativa de acalmar as suspeitas e fortes críticas já publicamente citadas por Vladimir Putin, os norte-americanos declaram, não só a existência de um fluxo constante de informação para manter a Rússia constantemente ao corrente na política americana de defesa anti-míssil, como denunciam a incapacidade do seu próprio sistema face a uma ameaça russa pois a larga força estratégia ofensiva da Rússia pode facilmente superar o sistema norte-americano devido ao reduzido número de mísseis interceptores e também ao tempo insuficiente para conseguir detectar e responder a uma ameaça da Rússia Ocidental.
O Papel da Rússia
O Fim do Entendimento EUA – Rússia
A intenção norte-americana, vinda a público em 2001 em instalar um sistema anti-mísseis na Europa de Leste, veio inaugurar uma nova frente de conflitos e instabilidade. Mesmo sem representar uma guerra propriamente dita, dado que para já a guerra é apenas verbal, não deixa de ser perigosa, e de novo num continente europeu que tinha alcançado uma certa paz e cooperação entre as suas múltiplas nações, pois, à excepção do Kosovo, pouco ou nada divide a Europa de Lisboa aos Urais.
Ninguém esperava o renascimento das velhas controvérsias do tempo da Guerra Fria, tantos anos após o fim da divisão mundial em dois blocos antagónicos e 35 anos após a assinatura do Tratado ABM de 1972 que previa a interdição e expansão de sistemas anti-mísseis. Este mesmo tratado foi abandonado pelos EUA em 2002 de forma a encetar os seus planos expansionistas no âmbito de sistemas de defesa anti-mísseis que vão desde o Alaska, Califórnia, Gronelândia, entre outros e agora a possibilidade de mais um sistema, este agora na Europa de Leste.
Com enorme relevância neste contexto goza um outro tratado assinado por estes dois países em 1987 que, na altura, fez aumentar a segurança na Europa e colaborou para o fim da Guerra Fria. Na ocasião, os EUA destruíram cerca de 850 ogivas nucleares, enquanto que a União Soviética eliminou outros 1850 dispositivos. Este tratado previa o fim da produção e utilização de mísseis nucleares de médio e longo alcance. O governo de Vladimir Putin anunciou que este acordo seria abandonado caso o governo norte-americano desse continuação à sua intenção de instalação do seu sistema de defesa.
A Resposta Russa
Moscovo mostrou-se, desde o anúncio americano, claramente em desacordo perante tal intenção, considerando uma afronta à sua segurança dado que o projecto seria implementado mesmo à sua porta e em duas das suas ex-Repúblicas soviéticas, nomeadamente Polónia e República Checa. Os argumentos norte-americanos, por seu lado, acentuam com premência a intercepção de lançamentos de mísseis terrestres por parte do Irão e da Coreia do Norte. Já Vladimir Putin encara este projecto como uma tentativa de resposta ao crescimento do poder militar do seu país, afirmando igualmente que tal projecto não superará a eficácia do arsenal estratégico russo durante os próximos quinze anos. Putin acrescenta ainda que a avaliação feita pela administração americana relativamente ao Irão é errónea, dado que estes não estarão a ter em conta a ampla dependência iraniana de tecnologia e capital russo para o desenvolvimento do seu programa nuclear. Ademais, desde 2001, a Rússia vem dizendo que também possui planos de desenvolvimento de sistemas semelhantes, e exemplo disso é um sistema que funciona perto da capital, Moscovo.
Como forma de superar as divergências entre os dois países, em Junho deste ano, Moscovo propôs a Washington a utilização em conjunto do radar de Gabalá que a Rússia aluga ao Azerbaijão, sendo que este país manifestou prontamente a sua disposição em ceder este radar para a utilização dos dois países, no quadro de um sistema conjunto de defesa anti-mísseis. Putin propôs igualmente a utilização de outra estação que está a ser construída na Rússia. O radar de Gabalá, posto em serviço em 1985, e a 200 km da fronteira com o Irão, permite controlar uma grande área do hemisfério sul, dado que possui um alcance de 6000 km, embora não sirva para guiar mísseis interceptores. George W. Bush declarou que a proposta moscovita não é totalmente descartável e que poderia ser incluída como parte de um sistema mais vasto de controlo de ameaças, no entanto, deixou claro que o plano com base na Polónia e na República Checa continua a ser a opção mais promovida por Washington.
Tendo em conta todos estes factos, este sistema poderá originar uma nova corrida armamentista para criar um sentimento de equilíbrio de balança de poder. Os receios russos acabam por ter uma grande dose de legitimidade, uma vez que à medida que se vão reerguendo das cinzas pós-colapso soviético, o governo norte-americano atento a tal facto não mede esforços para contrariar e minar possíveis zonas de influência russa. Esta almeja consolidar o seu reaparecimento na cena internacional e fará todos os possíveis de forma a diminuir a ingerência americana em zonas que Moscovo considera serem de sua influência. É igualmente interessante o facto deste projecto americano poder representar uma tentativa de Washington enfrentar a Rússia em solo europeu e assim criar uma nova divisão, um novo Muro de Berlim voltando o velho continente a ser palco de uma disputa entre os velhos rivais ideológicos.
O Papel da Europa
A Particularidade Geopolítica da Europa
Com efeito, a última grande consideração que há a realizar relativamente às implicações do sistema de defesa anti-míssil tem necessariamente que reflectir a posição europeia na mesma problemática. Numerosos analistas tais como Kissinger e Gray, existem no entanto diversas e importantes considerações a tecer relativamente à posição dos vários Estados europeus relativamente à sua percepção hierarquizada de ameaça. Desta forma, seria um erro admitirmos como paradigma descritivo da Guerra-Fria a existência de um sistema de alianças rígido e bipolar composto por duas superpotências e suas respectivas esferas de influência de âmbito mundial. Segundo esta tese, o Velho Continente seria um mero condomínio americano-soviético no qual os interesses geoestratégicos das grandes potências se reflectiriam em prol do containment de Kennan, subordinando a Europa Ocidental à política externa norte-americana, e para além da Cortina de Ferro referida por Churchill, Moscovo dominaria então todo o império comunista.
Toda a retórica atribuída à construção de um sistema de defesa anti-míssil, nos seus vários estágios como ficou patente no primeiro capítulo, sempre foi, pois, um assunto de uma sensível importância. Por múltiplas razões, sobretudo históricas e políticas, os Estados europeus sempre se procuraram distanciar, e se possível anular, não só da constante ameaça que veio de Leste, ao mesmo tempo que projectavam no resto do mundo os seus poderios imperiais, sobretudo português, espanhol e britânico. No entanto, a partir das Invasões Napoleónicas, este “equilíbrio instável” foi abruptamente quebrado, e desde então o Euromundo observou um contínuo retrocesso até às suas fronteiras continentais de partida, simbolizado epigraficamente pela Descolonização. Todo o período da Guerra-Fria mais não foi do que um estágio nessa longa luta contra a perda de influência do Euromundo nas relações internacionais, ia concedendo, obstinadamente, possibilidades para que potências estrangeiras subvertessem o equilíbrio europeu de potências.
De forma quasi lapidar, a Cortina de Ferro representava, de facto e de jure, a clivagem que intermediava dois mundos: o capitalista liberal norte-americano; e o marxista-leninista soviético. A ordem europeia nasceu, no pós-II Guerra Mundial, das repercussões do Plano Marshall e do Comecon, e a problemática relativa ao sistema de defesa anti-míssil reflectia essa dualidade. No âmbito da Doutrina MAD, o espectro nuclear-militar sempre assombrou a forma como a Europa vislumbrava o seu papel nas relações internacionais bipolares, tal como ficou patente na crise dos mísseis nucleares ofensivos que os EUA pretendiam colocar em território europeu, nomeadamente na Alemanha Federal, durante a década de 1980, na administração Reagan. Os mesmos epifenómenos manifestam-se na actual tensão envolta na construção de um novo sistema de protecção anti-míssil em territórios polaco e checo. Dividida entre defensores da importância do sistema perante quaisquer tipos de ameaças baseado na supremacia tecnológica do projecto, ou aqueles que continuam a reiterar o fim da lógica bipolar dos quarenta anos antecedentes, nomeadamente a esquerda europeia, o Paradoxo do Poder de Nye, parece impor-se com veemente resolução.
Segundo a mesma tese, e em matérias de política externa, os EUA necessitam desenvolver redobrados esforços multilaterais para assegurar a sua base de sustentação do estatuto que hoje têm no panorama internacional. Tal passa por uma aproximação a Moscovo, simultânea à construção de um laço transatlântico mais acentuado e profundo, de forma a cimentar um efectivo diálogo tripartido no que se refere a questões essenciais ao funcionamento, estabilidade e segurança do actual sistema internacional. É neste intuito que várias facções dentro da União Europeia têm realçado a importância que fóruns de discussão e acção como o Conselho de Segurança das Nações Unidas, o Conselho NATO-Rússia, Acordos de Parceria e Cooperação, e Comércio e Cooperação entre a União Europeia e a Comunidade de Estados Independentes, representam na tentativa de construir um novo entendimento entre as grandes potências. Segundo várias autoridades, políticas e científicas, é esse mesmo entendimento que o sistema de defesa anti-míssil vem ameaçar, contribuindo para uma crescente escalada de hostilidade na retórica de Washington, com George W. Bush, e Moscovo, com Vladimir Putin. Ademais, entre pretensões estratégicas alegadamente de defesa, contra ameaças de ataques não-autorizados ou provenientes de Estados Párias, e acusações de interesses expansionistas como leitmotiv para o mesmo sistema, a União Europeia vai procurando demarcar a sua posição como lhe é historicamente característico – conciliando os fantasmas de Leste e as pretensões de Oeste como forças motrizes para acelerar o seu projecto europeu, almejando uma maior coesão em termos de política externa e de defesa, enquanto pretende realçar o seu papel autónomo nas relações internacionais neste mundo globalizado.
O Panorama Intra-Europeu
Em termos exclusivamente europeus, o apoio incondicional da Polónia e República Checa relativamente à construção e instalação das respectivas bases que servirão o programa de defesa reflecte, também ele, percepções maioritariamente históricas, embora não descurando subdimensões como a estratégico-militar, cultural, económica, etc. Considerando a ameaça comunista de décadas anteriores, e subsequente entrada na OTAN uma vez fragmentado o império soviético, tem sido evidente a sua gradual mas constante tentativa de aproximação ao bloco de interesses da Europa Ocidental, afastando-se subsequentemente da esfera de influência agora russa. Nesta lógica, e não obstante o aparente desagrado das comunidades locais, estes países têm demonstrado com tradicional perseverança o seu intrínseco interesse em assegurarem junto de instituições exclusivamente europeias, como a União Europeia, a sua autonomia face ao “inimigo de Leste”, comportamento esse transversal a numerosos outros países e antigas repúblicas da URSS. Ademais, e como forma última de salvaguardarem um apoio pró-activo e considerável face à sua aparente vulnerabilidade, prestarem os seus territórios para colocação de bases norte-americanas garantes-lhes o derradeiro factor de dissuasão face a qualquer intento russo, ou sequer de Estados Párias, considerando a argumentação norte-americana.
No entanto, é do nosso entendimento que factores geopolíticos de tensão e fragmentação na região da Europa de Leste, como os modelos de Karl Haushofer, Saul Cohen, Nicholas Spykman, Halford Mackinder, Kissinger e inclusive Samuel Huntington continuarão a desempenhar um papel crucial na forma como as diferentes percepções estratégicas mundiais de potências interagem, como aquela dos Estados Unidos da América, da Rússia, e da União Europeia, conceito usualmente referido por “Worldviews” ou “Weltpolitik” à maneira de Guilherme II.
Entendemos ainda que, na óptica europeia, assistimos a um gradual retrocesso na forma através da qual a União Europeia, e os seus diversos Estados-membros, manifestam o seu apoio ao desenvolvimento da política externa norte-americana, especialmente nos assuntos que concernem o próprio espaço europeu, ao mesmo tempo que se mantém a histórica distância de segurança/contenção perante o poderio russo, ainda que meramente potencial. Este retrocesso parece animar o actual desenvolvimento do projecção de integração comunitária, que em muito beneficiou com o final da Guerra-Fria, estendendo-se agora de Helsínquia a Nicósia, de Lisboa a Riga, albergando um total de 27 Estados numa comunidade nunca antes testemunhada na História.
Considerações Finais
Tomando em consideração as análises supra referidas, que procuraram reflectir várias dimensões desta problemática, é agora tempo de elaborarmos uma reflexão crítica conclusiva da matéria. No âmbito da NATO e embora este sistema se afigure como uma útil extensão à sua capacidade defensiva militar que abrange os estados membros europeus, a possível implementação desse sistema de defesa anti-míssil a soldo dos Estados Unidos antevê o surgimento de divergências que outrora foram atenuadas pelo imediatismo de uma ameaça de leste. Com efeito, a própria redefinição do papel da NATO num contexto europeu alargado têm sido objecto de acérrimas discussões após a queda do bloco soviético. Secundarizando a natureza eminentemente defensiva a aliança tem demonstrado, através da celebração de diversas parcerias e acordos com estados do seu near abroad, uma pretensão crescentemente política. Sendo motivada por um núcleo de interesses de estados que contribuem para o grosso do seu orçamento, nomeadamente EUA, Reino Unido e Alemanha, temos vindo a observar a um gradual desfasamento entre a ponta de lança estratégica motivadora de novos avanços e a retaguarda legitimadora que confere à aliança um aparente sentido de unanimidade operante. Desta forma, não obstante esta transformação, a organização continua a representar um importante fórum de posições estratégicas, historicamente ameaçadas e vulneráveis a alterações político-militares constantes, provenientes sobretudo dos Balcãs, do próximo Oriente e o grupo de países da comunidade de estados independentes que servem de intermediação entre o espaço russo-europeu e os estados da Europa Central. Por outras palavras, os interesses estratégicos de estados menores impelem-nos a procurar na NATO uma salvaguarda à sua soberania.
Nesta lógica a funcionalidade e potencialidade deste sistema de defesa anti-míssil para esta região fragmentada constitui um factor acrescentado de estabilidade face a qualquer ameaça emergente ou ao previsível ressurgimento do colosso moscovita.
No entanto esta gestão de interdependências não é assim tão transparente. Para além dos óbvios laços étnico-culturais partilhados pelas diversas comunidades eslavas dispersas por todo o leste europeu, há também a considerar a influência histórica e contemporânea manifestada nas suas vertentes militar, política e económica, influência essa proveniente da Rússia que impede um claro alinhamento estratégico na região. Logo, o sistema supra referido exacerba divergências percepcionais distintas não só históricas como futuras contribuindo assim para uma fragilização da precária coesão europeia. Como não poderia deixar de ser, esta primeira dissensão tem efeitos subsequentes nos campos político e económico do próprio processo de integração comunitário. Sendo certo que a União Europeia assenta numa lógica primariamente economicista de espírito liberal, não admira que nas esferas política e estratégico-militares, estas dissensões se tornem ainda mais evidentes. Há pois que referir quais as possibilidades estratégicas que poderão advir desta discordância.
Considerando a complexa malha de interdependências que a União Europeia partilha com o resto do mundo, com especial enfoque para os Estados Unidos e Rússia, é de esperar um gradual afastamento estratégico e geopolítico por parte daquela em relação a estes. Dependendo das fontes energéticas provenientes da Rússia, e os constantes entraves que esta representa ao próprio processo de alargamento e integração, somando-se a isto a intrínseca comunhão de valores, interesses, politicas e culturais que partilhamos com os Estados Unidos, esse afastamento afigura-se como um dos maiores desafios que a própria União Europeia enfrentará no século XXI. No entanto, desta crise não advirão comportamentos inesperados dada a complexidade, apoiada em várias décadas de conjuntura adversa, na qual a Europa se viu submersa num bloco ocidental sedeado na América do Norte.
Com efeito surgem três cenários: a Europa aproxima-se gradualmente de Moscovo, dispensando para isso laços privilegiados com Washington; a lógica inversa verifica-se e assiste-se a um distanciamento acentuado em relação à Rússia, reforçando assim a aliança transatlântica; ou a Europa surge, ela própria, como uma unidade geoestratégica e geopolítica substancialmente autónoma. Em qualquer um dos casos, tais processos sofrem necessariamente com os vários desenvolvimentos históricos emergentes que causam erosão nessa definição de interesse estratégico. Logo, perante tal diluição, cabe-nos a nós, enquanto povo europeu, definirmos as nossas ambições de futuro. É de esperar, sob as forças das circunstâncias uma possível afirmação de uma Europa como um todo unido, coeso que tem uma única voz no plano internacional ao invés das actuais divergências que emergem sempre que uma problemática internacional surge. No entanto, tal emergência de uma “Europa unida” dependerá maioritariamente da evolução que o processo de integração europeu tomará, não esquecendo contudo a importância que as influências americana e russa têm no contexto europeu.
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Trabalho realizado por:
Joana Gonçalves
Milene Batista
Sofia Alves
Tiago Maurício
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