Contudo, os artigos já publicados analisavam apenas factos já consumados, tentando imprimir uma narrativa coerente e, tanto quanto possível, analítica, que melhor nos fizesse compreender quais as reais razões da sua ascensão, suas consequências no equilíbrio de poderes regional e internacional, e ainda problemáticas paralelas que tornam esta temática um assunto tão debatido nos dias que correm. Faltava, para conclusão, uma análise prospectiva que avançasse com cenários possíveis com desfecho, ou não, da actual crise. Não obstante o nosso interesse na matéria, deparámo-nos com um artigo escrito por Alexandre Reis Rodrigues, no seu Jornal de Defesa e Relações Internacionais, que com grande amabilidade e prontidão acedeu a autorizar uma transcrição parcial do seu trabalho que, intitulado "O Triângulo EUA/ Rússia/ Irão", se debruça sobre o mesmo objectivo prospectivo que nos propúnhamos realizar.
Desta forma, aqui fica uma parcela do referido artigo, para o qual gostaríamos ainda de direccionar a atenção cuidada do leitor para a sua relevância para as relações internacionais, assim como recomendamos ainda a regular leitura dos conteúdos publicados no Jornal de Defesa e Relações Internacionais, um sítio incontornável para entusiastas destas matérias.
"Não se julga que o novo quadro político se tenha gerado no Iraque, por vontade própria das facções em confronto, esgotadas por uma luta fratricida, sem desfecho à vista; a origem da mudança está no exterior, em alterações, talvez ainda pouco perceptíveis mas nem por isso menos reais, no relacionamento dos EUA com o Irão e na agenda política da Rússia com ambos.
É verdade que o tom extremamente belicoso, quer da parte da Bush (possibilidade de uma III Guerra Mundial se o Irão tiver armas nucleares), quer da parte de Ahmadinejad (irreversibilidade do programa nuclear) continua a ocupar os cabeçalhos da imprensa mas, não obstante isso, há também sinais de que uma complexa e subtil ofensiva diplomática, em curso há algum tempo, pode estar a dar os primeiros frutos. A recente visita de Putin a Teerão, no âmbito da Cimeira do Mar Cáspio, veio, acelerar esse processo. Vejamos como.
Para a Rússia, um Irão com armas nucleares, é tanto ou mais difícil de aceitar do que pelos EUA. Não é o receio de um ataque que preocupa os russos; é a ascensão do Irão como potência regional numa área de interesse directo para a Rússia, originando, provavelmente uma corrida aos armamentos por parte dos países do Golfo e uma maior interferência americana na zona para a protecção dos seus aliados tradicionais (Arábia Saudita, Kuwait, etc.). Calcula-se que Putin, nas conversações que manteve com Khamenei, pediu contenção nas questões nucleares, oferecendo em troca a solidariedade da Rússia e a oposição a um ataque americano.
Os detalhes desta proposta terão sido discutidos, duas semanas mais tarde, no final de Outubro, na visita que Lavrov fez a Teerão. Nada consta em termos oficiais sobre o que possa ter ficado acordado; no entanto, certamente ligado com este assunto, foi posteriormente anunciado que a Rússia estava a preparar, sob a supervisão da IAEA, o primeiro fornecimento de urânio para permitir a entrada em funcionamento da central nuclear de Bushehr. É um sinal de boa vontade da Rússia depois de ter suspendido a colaboração que estava a dar para conclusão da central, sob alegação de pagamentos em atraso. O sinal, em qualquer caso, é mais político do que prático: sabe-se que a central só entrará em funcionamento seis meses depois da recepção do urânio e ainda não foi anunciada qualquer data para a sua entrega. Por outras palavras, a Rússia continua a não querer largar de mão a chave para a entrada de funcionamento da central, presumivelmente à espera que o Irão confirme primeiro que abandona a pretensão de ter armas nucleares.
Teerão não poupou esforços a chamar a atenção de todo o mundo para as promessas de solidariedade russa mas a proposta de Putin, na prática, provocou uma intensificação do debate sobre o rumo a dar à política externa, pondo em dúvida a consistência do caminho que o Presidente Ahmadinejad protagoniza, em nome da ala radical: que é a altura de correr riscos, para aproveitar as circunstâncias especialmente favoráveis do momento (EUA enfraquecidos, Iraque com um governo amigo, inesperado maior rendimento do petróleo e gás, etc.).
O debate entre as elites iranianas vai continuar por mais algum tempo; a questão central é a de decidir o que é melhor para o Irão: se possuir armas nucleares em detrimento de uma parceria com a Rússia (a posição dos radicais) ou seguir um caminho com menos riscos - entendimento com a Rússia e postura mais racional em relação aos EUA - mas, eventualmente, menos conducente à obtenção do estatuto de potência regional (a posição de Rafsanjani, Al Larijani que se demitiu recentemente das elevadas funções que tinha na estrutura do Estado, etc.). Khamenei, que tomará a decisão final, ainda hesita; provavelmente, vai esperar pelas eleições presidenciais de Março, no próximo ano, e decidir depois, em função da correlação de forças entre radicais e reformadores que o acto eleitoral revelar.
O que ninguém tem dúvidas, em Teerão, é sobre a necessidade de «segurar» o Iraque, isto é, garantir que um governo sunita com exclusão de todos os xiitas, como o que governou o país durante o tempo de Saddam, é hipótese que não se repetirá. O risco, aos olhos do Irão, pode ter existido durante algum tempo, quando os EUA começaram a apoiar-se nos sunitas, inclusivamente armando as suas milícias, perante a incapacidade do governo xiita controlar minimamente a situação."