26 abril, 2008

Um Sermão por demais actual

Apontamentos do Padre António Vieira
Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água; e, em vendo, o peixe arremete cego a ele e fica preso e boqueando até que assi suspenso no ar, ou lançado no convés, acaba de morrer. Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida! Dir-me-eis que o mesmo fazem os homens Não vo-lho nego. Dá um exército batalha contra outro exército, metem-se os homens pelas ponta dos piques, dos chuços e das espadas, e porquê? Porque houve quem os engodou e lhe fez isca com dous retalhos de pano. A vaidade, entre os vícios, é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens. E que faz a vaidade? Põe em isca nas pontas desses piques, desses chuços e dessas espadas dous retalhos de pano, ou branco, que se chama hábito de Malta, ou verde, que se chama de Avis, ou vermelho, que se chama de Cristo e de Santiago; e os homens, por chegarem a passar esse retalho de pano ao peito, não reparam em tragar e engolir o ferro. E depois disso, que sucede? O mesmo que a vós. O que engoliu o ferro, ou ali ou noutra ocasião, ficou morto, e os mesmos retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar outros."

"...a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos. E não só diz que o comem de qualquer modo, senão que os engolem e devoram; qui devorant. Porque os grandes que têm o mando das cidades, e das províncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos, senão que devoram e engolem povos inteiros: quid devorant plebem meam. E de que modo o devoram e comem? Ut cibem panis: não como os outro comeres, senão como pão. A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne há dias de carne, e para o peixe dias de peixe, e para as frutas diferentes meses no ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come; e isto é o que padecem os pequenos: são o pão quotidiano dos grandes; e assi, como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem..."

In Sermão de Santo António aos Peixes, de Padre António Vieira (1654)
Como passados quase quatro séculos, tal raciocínio se mantém tão actual. Dá que pensar...

17 abril, 2008

A Revolução Islâmica - Prólogo

A Revolução Islâmica de 1979

O recrudescimento das relações Irão-Ocidente, e o ressurgimento do mundo muçulmano nas relações internacionais na última metade do século XX


(http://www.mehrnews.ir)

Trabalho realizado por:

Joana Gonçalves

Milene Batista

ofia Alves

Sofia Silva

Tiago Maurício


Para o Ocidente, o Irão encontra-se como que envolto numa aura de exotismo, misticismo e desconhecimento. Mais próximo de um ideal de inimigo do que amigo ou aliado, a História milenar do seu povo tem ocupado alguns dos capítulos fundamentais da Humanidade, por vezes em directa oposição às nossas raízes históricas e culturais no Velho Continente. Objecto de fascínio ou temeridade, o que é certo é que dificilmente poderemos ficar indiferentes a uma imagem real ou imaginada no mundo persa, não só do passado como do presente.

Como um dos primeiros grandes impérios, a Pérsia conseguiu expandir o seu poder e influência ao longo de toda a bacia médio orientista em direcção ao Mediterrâneo e Europa, adquirindo proporções que ultrapassaram largamente a dos seus antecessores egípcios, assírios e babilónicos. Desde então, a identidade e cultura persa têm testemunhado períodos de grandes oscilações no seu protagonismo nas relações internacionais regionais e mundiais, ora sofrendo a erosão dos tempos e o avanço de outros impérios, como renascendo de uma inacção para alterar o equilíbrio de forças a seu favor, como se de uma Fénix se tratasse. Contudo, e independentemente de qualquer apreciação valorativa que possamos indicar à Pérsia, ela constituiu inexoravelmente um dos poucos elementos de maior permanência na sociedade internacional.

Não obstante o seu peso histórico, é no século XX que vamos encontrar um novo ressurgimento da Pérsia nas relações internacionais, não só devido à sua enorme relevância em termos energéticos, sobretudo petróleo, como também nos espectros geoestratégicos e geopolíticos das grandes potências, e elemento fundamental para a estabilidade na região. Com efeito, a sua conturbada história recente é objecto de cuidada análise no presente documento, no qual pretendemos averiguar não só os contextos histórico e social que resultaram, em última instância, na Revolução Islâmica de 1979, como ainda toda a relevância da evolução desses acontecimentos sob um ponto de vista internacional mais abrangente, incluindo factores tão diversos como a religião, organização política, participação na sociedade internacional, geoeconomia, entre outros. Não só pelo papel desempenhado pelo regime do Shah na modernização e aproximação do Irão ao Ocidente num contexto de Guerra-Fria e gradual hostilização do Médio Oriente a qualquer intervenção externa, como pelas consequências resultantes do sucesso da revolução shiita no mundo muçulmano e para além dele. De acordo com vários analistas e académicos, o ano de 1979 é crucial para o correcto entendimento da importância do Islão no mundo contemporâneo, assim como pelo ressurgimento de movimentos subversivos de inspiração religiosa e fomentados por economias inflacionadas com os galopantes preços de petróleo.

Neste âmbito, analisaremos quais os eventos de maior relevo que constituíram o movimento designado de Revolução Islâmica, os seus principais intervenientes e interacções no campo político, religioso, económico e social, assim como extrapolaremos a realidade interna para uma balança de poderes regional na qual se encontram inseridos países de igual sensibilidade para os interesses do mundo Ocidental – Iraque, Arábia Saudita, Afeganistão, Paquistão e Turquia –, alguns dos vários vizinhos fronteiriços de Teerão. Ademais, o actual protagonismo adquirido pelo seu Presidente Ahmadinejad e programa nuclear, além da incontornável Guerra contra o Terrorismo, exigem um estudo detalhado da Revolução que trouxe ao mundo muçulmano uma nova esperança.

Para concluir, o presente trabalho e a apresentação oral que se seguirá, a respeito do conteúdo programático da disciplina de Estratégia e Relações de Poder da licenciatura de Relações Internacionais, 3º ano, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, cobrirá não só a escalada de tensões e conflitos antecedentes à revolução propriamente dita, como igualmente a sua repercussão num plano macro político.



  • Prólogo

  • Introdução

  • O Irão da Pérsia aos Safávidas

  • O Islão na Pérsia

  • O Irão dos Safávidas ao Pahlavis

  • O Jogo do Petróleo

  • O Início da Relação Irão-Ocidente

  • O Irão na II Guerra Mundial

  • O Irão na Guerra-Fria

  • O Projecto Reformista do Shah

  • Um Desagrado Crescente

  • As Manifestações de Janeiro, 1978

  • O Incêndio de Abadan

  • A Sexta-feira Negra

  • Os Últimos Dias do Trono do Pavão

  • O Período Pós-Revolucionário

  • Conclusão e Bibliografia
  • A Revolução Islâmica - O Islão na Pérsia

    Contextualização

    A actual República Islâmica o Irão foi até 1935 conhecida no Ocidente como Pérsia, passando desde então a ser designada como Irão. Em 1979 com a Revolução Islâmica promovida pelo carismático líder espiritual Ayatollah Khomeini, o país adoptou a sua designação actual e oficial de República Islâmica do Irão.

    A conquista da Pérsia pelo Islão deu-se com uma tal celeridade que, a julgar pela anterior força do Império Persa, diríamos estar presente uma autêntica força armada de vontade divina. Com efeito, desde a conquista de Meca pelo Profeta Maomé, a conquista árabe alastrou-se por toda a Península Arábica, tomando em Abu Bakr, Omar e Othman os principais conquistadores muçulmanos, responsáveis pela tomada do Egipto, Síria e cidade persa de Isfahan, em 642.

    No entanto, a conquista da Pérsia pelos exércitos dos Califados Omíada e Abássida não ocorreu de forma uniforme e unilinear, como em numerosas guerras europeias. Antes resultaram de um padrão assimétrico de conquista e pilhagem, em que investidas com largas hordas de cavalaria rompiam pelas linhas inimigas até encontrarem repouso nas cidades próximas. Desta forma, quando em inferioridade, as tropas árabes preferiam recuar e investir noutra oportunidade, ou até forçar acampamentos e urbes inimigas ao cerco, adiando uma batalha para vitória definitiva.

    Assim, as Batalhas de Karbala (680) e Wasi (702), na Arábia do Norte, constituíram importantes marcos históricos nas conquistas árabes, mesmo quando as suas tropas avançavam em regiões tão distantes como as de Cabul, Afeganistão, Montanhas Punjabe, no Paquistão, e Tripoli, Líbia. Derrotando os impérios persa e visigótico, e anulando qualquer ofensiva do Império Bizantino, a expansão do Islão por todo o Norte de África, Próximo e Médio Oriente deu-se a um ritmo estonteante e dificilmente defensável para as tropas que herdaram o antigo poderio persa, que noutro tempos conquistara ele próprio uma extensão tão vasta como aquela das cidades-gregas até ao Indo.

    A análise do tema Revolução Islâmica ocorrida no Irão em 1979 necessita, pois, no nosso entender, de uma pequena contextualização inicial sobre toda a temática do Islão, por forma a obtermos um melhor entendimento. Nela abordaremos os fundamentos da doutrina islâmica no mundo contemporâneo, uma breve evolução histórica e as suas clivagens internas.


    O Islão

    Durante muitos séculos, os termos Islão, Allah, Muhammad, shari`a ou Alcorão estiveram como que adormecidos nas mentes dos ocidentais. No entanto, nas últimas décadas, despertaram, passando a fazer parte do vocabulário de todo o mundo, mesmo que por vezes de forma errónea e com uma conotação negativa, fruto do crescente fundamentalismo islâmico que ameaça tomar de assalto a doutrina da submissão pela do martírio.

    O Islamismo, uma das três religiões monoteístas - tal como o Cristianismo e o Judaísmo -, avança mais do que qualquer outra com maior ênfase em África e na Ásia. Tal êxito deve-se à simplicidade lógica da sua doutrina.

    Islão significa “submissão à vontade de Allah”, uma religião de conquista que emergiu no século VII na Península Arábica, baseada nos ensinamentos religiosos do profeta Maomé (Muhammad), e numa escritura sagrada, o Alcorão, que vem funcionando ao longo dos séculos como um código de conduta para a comunidade muçulmana (Um`ma) e que Maomé, o ultimo Profeta de Allah trouxe. O Islão é visto pelos seus crentes como um modo de vida que inclui instruções que se relacionam com todos os aspectos da vida humana.

    No Islão existem “cinco pilares”, que funcionam como autênticas obrigações de culto para cumprimento escrupuloso dos seguidores da fé islâmica. Os pilares do Islão são: a Profissão de Fé (Al Shehada),o pilar mais importante que exige a confissão legal e sincera da sua fé; a Oração (Al Salat), que representa a base fundamental da religião, podendo ser classificada em orações obrigatórias (fard) que envolvem as cinco orações quotidianas, super-rogatórias (Wágib e Sunna) que incluem as orações que acompanham os serviços obrigatórios e as congregações nas grandes festas, e as facultativas que compreendem as orações voluntárias proferidas em qualquer hora do dia ou da noite; a Esmola Legal (Al Zakat) possuindo o móbil de purificar aquele que a dá através da vitória sobre o egoísmo, e da satisfação moral de participar na construção de uma sociedade muçulmana mais justa; o Jejum (Al Swam) traduz-se na abstinência completa de ingerir alimentos, beber, ter relações sexuais e fumar no espaço de tempo que decorre entre a alvorada e o pôr-do-sol durante o mês do Ramadão; a Peregrinação (Al Hajj) consiste numa série elaborada de ritos que exigem vários dias para serem cumpridos na mesquita da cidade santa de Meca, onde nasceu o Profeta.

    Queremos também referir, segundo as palavras do Professor Doutor Hélder Santos Costa, a “Guerra Santa (Al Jihad)” como uma espécie de sexto pilar do Islão. Este é um termo que nos habituámos a ouvir e na maioria das vezes associada a actos de violência. Contudo, a jihad representa um acto de devoção que abre as portas do Paraíso, subdividindo-se doutrinalmente em quatro variantes, a saber: a Jihad Ofensiva; a Jihad Defensiva; a Jihad Menor; e a Jihad Maior. De forma sucinta, e se possível esclarecedora, a Jihad Ofensiva consiste no ataque ao território dos infiéis, o “Dar-al-Kufr” de forma a conquistá-lo e submeter a sua população ao Islão. Quanto à Jihad Defensiva, esta surgirá quando o território do “Dar-al-Islam” (Mundo do Islão) é objecto de ataques provenientes do “Dar-al-Harb”, ou seja, dos infiéis ou não crentes. Nesta variante, todos os muçulmanos devem participar com armas ou donativos, orações, etc. Relativamente à Jihad Maior, esta representa a luta interna de todos os muçulmanos no sentido de banir do seu espírito sentimentos como a avareza, a vingança, a traição ou a mentira. Já a Jihad Menor representa a Jihad Violenta, a luta contra agressores, e que deverá ser usada para promover e proteger o Islão.

    Como já referimos, muitas das coisas que a grande maioria das pessoas associa ao Islamismo, consequência do desconhecimento e superficialidade das informações divulgadas pelos media internacionais, têm origem na prática shiita. O shiismo e o sunismo constituem as principais correntes do Islão, não são as únicas mas as que maior relevo possuem. O sunismo é, de longe, a mais popular, contando com cerca de 90% dos crentes. Não obstantes as suas semelhanças, apresentam dissensões fundamentais na construção do seu entendimento sobre a evolução da religião. A diferença entre elas não reside em fundamentos doutrinais, mas antes em circunstâncias históricas relativas à sucessão de Maomé.

    Os sunitas são praticantes da tradição profética (Sunna) e aceitam como sucessores do Profeta os Quatro Califas Bem Guiados – Abu Bakr, Omar, Othman e Ali. Já os shiitas não encaram com bons olhos os primeiros três Califas, uma vez que estes, segundo a óptica shiita, ascenderam ao Califado em detrimento de Ali, primo e genro do Profeta, e por esta condição vêem-no como o mais digno sucessor. Ali foi assassinado em 661, tal como os seus dois filhos, Hassan e Hussain. A forma como este último morreu, na Batalha de Karbala (680), no actual Iraque, constitui o clímax da história combatente do shiismo.

    De forma sucinta, a Batalha de Karbala (680), junto ao rio Eufrates, consistiu num combate entre Hussain e os seus 72 companheiros contra o exército de milhares de homens do Califa Yazid I (da Dinastia Omíada de Damasco). Após resistirem por alguns dias ao exército sunita, Hussain e os seus companheiros acabaram por ser derrotados e mortos. Deste massacre, apenas mulheres e crianças escaparam. Esta batalha afigura-se como o melhor exemplo da filosofia combatente dos shiitas, “antes a morte que a rendição”. O facto de Hussain se ter martirizado foi crucial para os shiitas, que acreditam que, a começar com o próprio Ali, todos, à excepção de um dos Doze Imams (isto é, Ali e os seus descendentes directos), foram martirizados. A necessidade de resistir a todos os obstáculos por uma questão de princípios, a disponibilidade para o martírio, a paixão total, a não preocupação com a morte e a aceitação da tragédia são aspectos familiares aos shiitas. Os estudiosos costumam classificá-los como o “Paradigma de Karbala” (Fischer 1980).

    O shiismo Duodecimano (assim designados por acreditarem que os Íman são doze, sendo que o ultimo, Mohammad al-Mahdi, se encontra em processo de ocultação. Este processo findará quando for vontade de Allah e o Íman aparecerá para instituir o Reino da justiça no seio da Humanidade), constitui a religião maioritária e oficial no Irão, tal como no Iraque, facto este desde 1501, cerca de 60% da população. No entanto, estes são países excepção pois nos restantes Estados árabes, a maioria sunita é detentora do poder político. Este factor não e irrelevante, antes constitui um factor de desestabilização dentro da comunidade muçulmana de toda a região do Médio Oriente.

    Como já referimos atrás, estas duas grandes famílias possuem variantes, no sunismo, e de forma sucinta temos as seguintes Escolas: Hanifita, Hanbalita; Malikita e Shafita. No que diz respeito ao shiismo temos os Duodecimanos, os Ismaelitas, Zayiditas e Kharijitas.
    O Irão, desde a sua Revolução Islâmica de 1979, apresenta aspectos deste paradigma de Karbala que ajudam a explicar a sua política externa, quer no âmbito regional quer mundial. Aliás, esta revolução serviu em grande parte para o despertar da letargia e catapultar o Islão Revolucionário para o jogo de poderes que não só afectam toda a região do Médio Oriente, como ainda se repercutem na forma como o Ocidente interpreta e se relaciona com o mundo islâmico.

    É de salientar que, embora assistamos a uma forte onda de revivalismo islâmico nas sociedades muçulmanas, a Revolução iraniana está em grande parte ligada à perspectiva da história e da sociedade shiita. É por esta razão que uma revolução semelhante com base no modelo iraniano não é possível no Egipto ou no Paquistão, onde os sunitas constituem a maioria da população.



  • Prólogo

  • Introdução

  • O Irão da Pérsia aos Safávidas

  • O Islão na Pérsia

  • O Irão dos Safávidas ao Pahlavis

  • O Jogo do Petróleo

  • O Início da Relação Irão-Ocidente

  • O Irão na II Guerra Mundial

  • O Irão na Guerra-Fria

  • O Projecto Reformista do Shah

  • Um Desagrado Crescente

  • As Manifestações de Janeiro, 1978

  • O Incêndio de Abadan

  • A Sexta-feira Negra

  • Os Últimos Dias do Trono do Pavão

  • O Período Pós-Revolucionário

  • Conclusão e Bibliografia
  • A Revolução Islâmica - Introdução

    Em 1979, milhões de populares saíram às ruas em protesto contra o regime monárquico do Shah Reza Pahlavi enquanto clamavam pelo regresso do Ayatollah Khomeini, em manifestações que se estenderam das ruas da capital Teerão até todas as outras cidades e províncias do Irão. Este marco histórico numa evolução de acontecimentos que se alargavam desde 1978, com particular incidência, e desde 1953 numa escalada de dissensões e actos manifestos de oposição ao regime pelas suas políticas interna e externa, provou ser uma reviravolta no modo como o Islão enfrentava um sistema bipolar e de globalização. Desde então, o mundo parece ter vindo a caminhar para uma confirmação da tese de Huntington de 1996 intitulada O Choque de Civilizações, na qual identifica que as grandes linhas de fractura ou de tensão nas relações internacionais de finais do século XX e início do século XXI serão em zonas de clivagens religiosas.

    Com efeito, nesta óptica o Islão possui fronteiras bastante conflituosas com os seus vizinhos. No entanto, esta uma evolução que deve muito do seu fulgor religioso e ideológico à Revolução Islâmica de 1979, pois até então o mundo islâmico, especialmente no Médio Oriente, enfrentava sérias dificuldades em acompanhar o progresso económico e tecnológico testemunhado nas restantes regiões do globo, assim como as pressões resultantes da globalização dos mercados mundiais. Numa clara afirmação da especificidade histórica, cultural e religiosa do povo do Profeta e de Allah, o Islão emergiu como um dos principais actores contemporâneos das relações internacionais, atraindo sobre si toda uma hoste de islamólogos, estudiosos, analistas e curiosos que procuram destrinçar a complexa realidade que personalidades como o Shah Pahlavi, Ayatollah Khomeini, Saddam Hussein, Nasser, Yasser Arafat, entre muitos outros, expressam na esfera internacional.

    No caso particular do Irão, o enredo da sua revolução desenrola-se entre duas grandes figuras com os seus projectos completamente distintos daquilo que deveria ser a perspectiva da nação iraniana face ao Al-Corão e ao Islão, assim como face ao mundo. O primeiro, modernista e pró-ocidental, visou implementar políticas de ocidentalização numa população esmagadoramente muçulmana tradicionalista e de identidade muito vincada e específica; o segundo pregou um regresso à Shari`a e à teocratização do regime. Ambos alegavam defender os melhores interesses da nação muçulmana iraniana, embora com planos completamente díspares.

    De igual forma, os partidários internos e externas de cada figura também eram completamente díspares, partidários esses que participaram activamente no desenrolar de certos acontecimentos chave que agudizaram uma situação já de si precária e volátil. Mas como em todos os regimes pré-revolucionários, a decadência é gradual e um somatório de vários factores interdependentes, mas que em determinadas circunstâncias resultam num súbito levantamento da vontade das massas contra o poder da classe governante. Desde a queda do Primeiro-Ministro Mossadegh num golpe de Estado ensaiado pelos EUA para o derrubar, até à inspiração da Revolução Branca e treino da Savak, a polícia secreta do regime, podemos testemunhar uma contínua promiscuidade entre os principais intervenientes iranianos e as grandes potências internacionais da época.

    O trabalho que se segue respeita a ordem de ideias infra:

    • Contextualização da história do Irão até ao século XX, referindo as suas origens no Império Persa, disputa entre os povos Selêucida, macedónio, Árabe, Sassanida, Safávida, e Qadjar até à dinastia Pahlavi;
    • Referência a noções fundamentais do Islão enquanto religião, ideologia, doutrina e movimento social no Irão, desde a sua introdução no século VII d.C. até à Revolução Islâmica, assim como os seus cismas, famílias e fundamentos;
    • Análise elaborada do contributo do regime Qadjar no dealbar do século XX e importância de Reza Khan como antecedente dinástico do regime Pahlavi do Shah, antes da ascensão do seu filho, Reza Pahlavi em 1941;
    • Avaliação dos projectos reformistas e modernizantes introduzidos pelo Shah ao longo da sua dinastia, seu planeamento e execução;
    • Avaliação do movimento reaccionário anti-monárquico desde 1941, ano da ascensão do Shah Reza ao trono, seus principais interlocutores, apoiantes e acções com vista à destituição do mesmo do Trono do Pavão;
    • Inserção internacional do Irão no período da II Guerra Mundial e Guerra-Fria, e relação com os Estados Unidos da América e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas enquanto dois pólos estruturantes de um sistema no qual se observou a Revolução de 1979;
    • Estudo da importância do comércio petrolífero para a economia e sociedade iraniana, suas concessões a empresas estrangeiras, nacionalização na década de 50 e subsequente aproveitamento até ao regime teocrático do Ayatollah Khomeini;
    • Análise do período iraniano pós-revolucionário até à actualidade, tomando em linha de conta as consequências e importância da Revolução Islâmica na sucessão desses acontecimentos;

    Segundo esta sequência de conteúdos, assim como pela perspectiva adoptada sobre a importância dos mesmos, extrairemos certamente as devidas lições de um fenómeno cuja importância para as relações internacionais não foi ainda devidamente explorada, não só pela riqueza analítica dos eventos e consequências, como, mais importante ainda, a sua contínua sucessão a um ritmo acelerado em matérias de política internacional contemporânea.


  • Prólogo

  • Introdução

  • O Irão da Pérsia aos Safávidas

  • O Islão na Pérsia

  • O Irão dos Safávidas ao Pahlavis

  • O Jogo do Petróleo

  • O Início da Relação Irão-Ocidente

  • O Irão na II Guerra Mundial

  • O Irão na Guerra-Fria

  • O Projecto Reformista do Shah

  • Um Desagrado Crescente

  • As Manifestações de Janeiro, 1978

  • O Incêndio de Abadan

  • A Sexta-feira Negra

  • Os Últimos Dias do Trono do Pavão

  • O Período Pós-Revolucionário

  • Conclusão e Bibliografia
  • A Revolução Islâmica - O Irão da Pérsia aos Safávidas

    Contextualização

    A cultura iraniana, tal como hoje a conhecemos, remonta a uma das mais antigas a subsistir à passagem dos tempos, atravessando várias épocas e antigos impérios, línguas e religiões diversas, mas sempre mantendo uma idiossincrasia inexpugnável que ainda hoje a torna diferente de tantas outras que lhe fazem fronteira. Com efeito, se quisermos aprofundar o nosso conhecimento sobre a completa dimensão do impacto que a Revolução Islâmica causou na sociedade e cultura iranianas, e como ela afectou um novo realinhamento político-religioso na região, é fundamental recuarmos brevemente às origens da cultura persa para, construído um padrão histórico de referência, contextualizarmos os eventos de Janeiro e Fevereiro de 1979.


    O Estabelecimento Elamita

    O estabelecimento das primeiras populações no que antigamente era territorialmente representado como a Pérsia ocorreu entre os séculos XV e XIV a.C. Com a designação de Elam, o actual território iraniano pertencia a um império cuja extensão alargava-se desde o rio Tigre até à cordilheira montanhosa no Sul do Irão, na Província de Elam, de onde lhe tira o nome.

    Coexistente com os impérios egípcio, hitita, assírio e babilónico, era um império de dimensões relativamente pequenas e muito voláteis, sujeito às sucessivas acções expansivas e defensivas dos outros impérios circundantes. Com origens por volta do ano 5000 a.C., representando uma das mais antigas civilizações do mundo, a sua população era um misto de nómadas e agricultores, estendendo-se por vários reinos até ao planalto central do Irão, adjacente ao Mar Cáspio, onde se encontra actualmente Teerão. Herdeira do Império Mesopotâmico (2334-1595 a.C.), é daí em diante que adquire uma inércia e identidade própria dos outros territórios do antigo império.

    A principal ameaça ao império Elam era a Babilónia, cujo domínio no comércio e lavoura de escravos e guerreiros apresentavam uma franca superioridade perante a fraca militarização e desenvolvimento urbano de Elam. A Babilónia, para além de possuir extensos rios navegáveis ao longo de todo o seu território, aliás, à volta dos quais se desenvolveu, possuía vastos recursos populacionais e excedentes agrícolas que lhes granjeavam uma vantagem estratégica ímpar face a Elam. A estes valia-lhes o terreno extremamente acidentado e de difícil acesso, o que garantia à população um refúgio acessível e conhecido face a hordas de invasores desconhecedores da complexa rede de comunicações nos desfiladeiros e vales das Montanhas Zagros.

    Não obstante a distinta identidade de Elam, a qual mais tarde adquiriu a designação de Elamita, esta viria a ser brutalmente anexada pela expansão do império Assírio, subsequente ao declínio dos impérios Mesopotâmico e Hitita. Não só eram as práticas assírias completamente opressoras de qualquer cultura e/ou civilização estrangeira, como faziam das suas invasões autênticas sessões de carnificina e destruição de artefactos, por pilhagem, queima ou simples esmagar pelos seus carros de combate e cavalaria, francamente superiores a todos os outros exércitos da época. Desta forma, entre 934 e 626 a.C., o domínio da Assíria é supremo. Foram necessárias rebeliões internas por parte do povo babilónico e um jugo de mais cem anos para que uma cultura persa emergisse como uma potência de pleno direito, suficientemente forte para garantir a sua sobrevivência e dinâmica para encetar uma expansão que aglutinou debaixo da mesma monarquia os anteriores impérios assírio, babilónico e mesopotâmico.

    O surgimento e declínio do Império Aqueménida da Pérsia

    Podemos afirmar que o surgimento e afirmação de uma verdadeira identidade persa emergiu com o império de mesmo nome, por volta do século VI a.C.. Originário em Persépolis, e estendendo desde a actual Abadan até ao território iraniano a Norte do Estreito de Ormuz, esta nova civilização eclipsada pelos anteriores impérios mesopotâmico e assírio entra de rompante em toda a região do Médio e Próximo Oriente, conquistando todos os povos e cidades à sua passagem. Com efeito, sob a liderança do carismático líder Ciro, O Grande, é o império persa que se afirma o derradeiro domínio da cultura persa sobre as demais, granjeando ao seu imperador o título de Rei dos Reis, que mais tarde viria a ser utilizado pelos Pahlavis no século XX.

    Senhor do maior exército que alguma vez caminhou debaixo de uma mesma bandeira, Ciro não só consolidou o seu domínio sobre o Médio Oriente até ao rio Indo a Leste, como também conquistou toda a Anatólia até aos Estreitos do Bósforo e Dardanelos, introduzindo toda uma nova concepção ao termo império. De facto, posteriormente acrescentado pelo seu descendente Cambisses e, de seguida, por Dário, em direcção ao Reino do Egipto e Líbia, e aos Reinos Hindus e Trácia, respectivamente, o Império Persa dos Aqueménidas, consagrou-se o derradeiro poder debaixo dos Céus a que cuja oposição era totalmente fútil. Pelo menos assim o julgaram os povos já conquistados, até que as forças de Dário chegaram às cidades-Estado da Grécia Antiga.

    Face a um inimigo flexível, multicéfalo e com igual poderio naval, as forças de Dário logo perceberiam quais as suas fronteiras a Ocidente. Com efeito, desde a primeira expansão em direcção ao Mar Mediterrâneo, as tropas persas fizeram-se acompanhar por uma frota de navios de tropas e abastecimentos que complementava não só as suas incursões por terra, como também infligia pesadas perdas no comércio e riqueza inimigas numa estratégia de asfixia que rendeu numerosas cidades quando sitiadas. Procurando prosseguir com igual estratégia, Dário deparou-se então com uma forte oposição no Mar Egeu onde o superior conhecimento helénico cortou por completo as linhas de abastecimento do Império Persa, assim como a sua capacidade em aventurar-se demasiado longe das suas possessões.

    Já no século V a.C., a poder grego apresenta-se como uma forte oposição à continuação da expansão persa em direcção à Europa, pelo que quer com Dário, quer com Xerxes, os vastos impérios de escravos, elefantes, aqueménidas, egípcios, partos, medos, e demais povos sob o seu domínio, o Império Persa vacila e vê-se forçado a recuar gradualmente até ao interior do Médio Oriente onde toma refúgio dos povos do mar, como então eram conhecidos os helénicos e cartagineses.

    O esplendor de Alexandre e divisão do império

    Como vimos anteriormente, a oposição helénica e a evidência de vários focos de dissensões dentro do império levaram ao declínio do outrora grandioso Império Persa. Obedecendo a uma eterna lei da História, ao fracasso de uns segue-se o sucesso de outros. Perante o amplo retrocesso da vitalidade e poder persa, um inimigo vindo do Ocidente traria de novo uma redobrada época de prosperidade a toda a Pérsia e mais além, embora não sob o domínio de povos autóctones. Falamos de Alexandre, O Grande.

    Originário da Macedónia, anteriormente sob o jugo ou influência persa e helénica, dependendo das regiões, o jovem Alexandre herdava o trono do Reino da Macedónia. Cultural e historicamente próximo da cultura grega, este precoce governante é frequentemente apelidado como um dos maiores génios militares da História da Humanidade, pois realizou um feito que à partida se julgava impossível, conquistando com tropas aparentemente desfavorecidas um território exponencialmente superior ao seu de origem. Assim, começando as suas campanhas na Trácia, actual Turquia europeia, em 336 a.C., fundou um império extraordinário que se alastrou até às províncias ao Norte da Índia em apenas uma década. Misturando a cultura helénica com a disciplina e força militar do Oriente, comandou na linha da frente as tropas que assumiriam os despojos de todo o Império Persa, ora por conquista ora por anexação ou protectoria.

    Contudo, numa época bastante frívola da sua vida, não teve a oportunidade de gozar as suas conquistas e morreu de febre em 323 a.C, gerando um enorme problema de sucessão do seu vasto império. Sem filhos nem descendência directa, foram as suas mais altas patentes que reclamaram pedaços do império, dividindo territórios a seu belo prazer, enquanto utilizavam influências e afinidades políticas e militares para assegurarem alguma legitimidade sobre os seus novos reinos. Assim nasceu o Reino Selêucida, após prolongadas batalhas que se prolongaram por todo o século III a.C. Desta forma, dos originais doze generais das campanhas de Alexandre, todos disputaram partes do império e nenhum sobreviveu para reclamar o trono.

    O Reino Selêucida, que abrangia os territórios da Turquia do Sul, Mediterrâneo Oriental e Pérsia até à Índia, seria um dos vários objectos de cobiça por parte dos governantes da nova potência emergente – Roma.

    O império romano e guerras de sucessão

    Com a unificação da Península Itálica, as cidades-Estado italianas depressa fundaram um império cuja duração e importância civilizacional chegariam aos dias de hoje, não só através das suas inúmeras construções espalhadas sobretudo pelo Sul da Europa, mas também através das suas artes, conhecimento, ciências, leis, cultura, valores e tradições. Com efeito, aquilo a que se designa de Império Romano foi um espaço enorme, que abrangia desde a Península Ibérica até à Escócia, passando pelo Reno até ao Mar Negro, enquanto que a Sul ia desde Marrocos até à Pérsia. No entanto, desde o seu surgimento e crescimento no século II a.C., até ao século IV d.C., essa foi a sua extensão máxima, pelo que não conseguiu penetrar no território dos Partos, que governaram a Pérsia do século III a.C. até ao século III d.C.

    Com a queda de Roma e separação do império em Ocidental e Oriental, o poder da Pérsia apenas ficou salvaguardado de uma ameaça externa mais poderosa, enquanto assistia à desintegração dos seus territórios no Mediterrâneo Oriental em detrimento dos Sírios, Arménios, e outros reinos menores. De certa forma, desde o declínio romano até à invasão árabe, no século VII d.C., nenhum outro império viria a reclamar os grandiosos feitos dos seus gloriosos antecedentes, e a Pérsia mergulharia num período em que seria arrastada pela civilização vinda da Arábia, embora com alguns privilégios que reconheciam na sua civilização milenar algum crédito cultural, político e social.


  • Prólogo

  • Introdução

  • O Irão da Pérsia aos Safávidas

  • O Islão na Pérsia

  • O Irão dos Safávidas ao Pahlavis

  • O Jogo do Petróleo

  • O Início da Relação Irão-Ocidente

  • O Irão na II Guerra Mundial

  • O Irão na Guerra-Fria

  • O Projecto Reformista do Shah

  • Um Desagrado Crescente

  • As Manifestações de Janeiro, 1978

  • O Incêndio de Abadan

  • A Sexta-feira Negra

  • Os Últimos Dias do Trono do Pavão

  • O Período Pós-Revolucionário

  • Conclusão e Bibliografia
  • A Revolução Islâmica - O Irão dos Safávidas aos Pahlavis

    Os Safávidas

    Após três séculos em que a Pérsia esteve sob domínio dos Mongóis, Turcos, Tártaros e Turcomanos, a família Safávida chega ao poder (1502-1736). A família Safávida declarava-se descendente do primeiro Ímam, Ali. O Shah Isma`il foi o grande responsável pela proclamação do shiismo Duodecimano como religião oficial do Estado. Este constituiu o passo mais importante para a criação de uma nação iraniana.

    Isma`il usou o shiismo para construir um Império que, passados dez anos da sua criação incluía não só a maior parte do Irão moderno como também se estenda pela Ásia Central, Bagdad, pelo Cáucaso e Golfo Pérsico. Durante o reinado deste Shah, a Pérsia emergiu não só em termos políticos como espirituais.

    Em 1538, sobe ao poder o Shah Abbas I que se adequava ao arquétipo dos governantes iranianos, não só porque se dedicava a trazer o melhor do mundo para o seu reino, mas também porque mantinha uma tirania cruel, onde a tortura e as execuções eram práticas usuais no seu reinado. Não obstante a forma tirânica como governava, o Shah presidiu a um renascimento cultural e político transferindo a capital do Império para Isfahan, transformando-a numa das cidades mais magníficas do mundo. Para tal, mandou vir artesãos arménios para o ajudarem a construir a sua capital, mercadores holandeses para aumentar o alcance do seu grandioso bazar e diplomatas de todo o mundo para lhe conferirem um ar cosmopolita. Também no seu reinado, este procedeu à celebração da paz com os otomanos, expulsou os uzbeques (as duas principais ameaças da família Safávida), reformou o exército e recuperou a Ilha de Ormuz das mãos dos portugueses em 1622.

    A morte do Shah Abbas I em 1629 coincidiu com o início do declínio da Pérsia Safávida, uma vez que os seus sucessores mostraram-se incapazes de preservarem o seu legado. Dada a forma cruel como Abbas tratava os seus herdeiros, não é surpreendente que após a sua morte a Pérsia tenha caído na decadência.

    Considerando a ineficácia governativa dos sucessores de Abbas I, o país começou a ser saqueado por povos vizinhos e em 1722 membros das tribos afegãs invadiram o país e tomaram a capital Isfahan. A Pérsia ficou então sob domínio afegão, nas mães do Shah Mahmoud,, mas não por muito tempo, já que os afegãos acabaram por ser expulsos por um grande líder histórico do Irão, o Shah Nadir, um turcomano sunita , um dos chefes da tribo Afshar, fundando assim a dinastia dos Afsharidas (1736). Um dos grandes feitos do Shah Nadir foi o seu avanço em direcção a leste e a consequente tomada de Deli em 1738. Um dos tesouros que de lá trouxe foi o Trono do Pavão, uma peça cravada de jóias que viria a tornar-se no símbolo da realeza iraniana. Nadir foi assassinado em 1747, e depois de uma série de lutas pelo poder que duraram quase cinquenta anos, entre os Zand e os Qadjares, uma nova dinastia emergiu, a Dinastia Qadjar.

    A dinastia Qadjar

    Os Qadjares, uma tribo turcomana proveniente do Mar Cáspio, governou o Irão desde o final do século XVIII até 1925. Os seus reis corruptos e nada vanguardistas são altamente responsáveis pelo atraso e pobreza do Irão. Enquanto grande parte do mundo se lançava na modernidade, fruto da Revolução Industrial, sob os Qadjares, o Irão estagnava. Se durante o século XIX o Irão tivesse sido governado por um regime forte e visionário, poderia ter conseguido afastar-se da cobiça e ingerência das potências estrangeiras.

    A geografia do Irão colocou-o na mira das grandes potências imperiais da época, a Grã-Bretanha e a Rússia. O facto de o Irão ser governado por homens fracos e profundamente embrenhados nos seus próprios interesses, levou a que ambas as potências se apressassem a preencher o vazio de poder deixado pelos Qadjares. A corrupção que imperava na corte e a leviandade com que deixaram o país cair nas mãos das potências estrangeiras, levou à perda de ligação entre a monarquia e o povo. Enquanto o Irão se afundava cada vez mais na pobreza e na dependência externa, uma sede de mudança nascia nas consciências dos iranianos. Nas grandes cidades, os bazares transformaram-se em autênticos fóruns de protesto contra os monarcas. Os reformadores religiosos, os maçónicos e até os socialistas começaram a espalhar ideias novas e radicais. Notícias sobre as lutas em favor dos governos constitucionais na Europa e no Império Otomano instigaram as classes alfabetizadas.

    A Revolta do Tabaco e a Revolução Constitucional

    Em 1891, o Shah Nasir al-Din, não muito ciente da crescente onda de contestação, vendeu a indústria tabaqueira a uma companhia inglesa, permitindo-lhes produzir, vender e exportar um produto amplamente consumido pelos iranianos. Os iranianos consideraram este acto do Shah como um insulto difícil de suportar. Foi então que uma coligação de intelectuais, agricultores, comerciantes e líderes religiosos decidiram oferecer resistência. A figura religiosa mais importante do país, o xeque Shirezi, apoiou este protesto e emitiu uma fatwa, um decreto religioso, onde declarava que enquanto os estrangeiros controlassem a indústria tabaqueira, fumar constituía uma desobediência ao décimo segundo Ímam. Esta mensagem foi amplamente difundida e quase todos que a escutaram obedeceram. O Shah Nasir al-Din ficou bastante alarmado e quando as suas próprias mulheres deixaram de fumar, entendeu que não lhe restava outra solução senão o cancelamento da concessão. Este momento da história do Irão ficou conhecido como Revolta do Tabaco.

    Na década que se seguiu a esta Revolta do Tabaco, a consciência política dos iranianos cresceu consideravelmente. A sua crença de que Allah manda que os líderes governem de forma justa (um dogma central da doutrina shiita) levou muitos a aclamarem as ideias de soberania popular. Assim, em Dezembro de 1905 surgiu uma exigência surpreendente nas mentes dos que mais contestavam a dinastia Qadjar, a criação de uma assembleia consultiva para assegurar que as leis eram aplicadas todas da mesma forma em todas as regiões do país. Tomando em consideração a relutância do Shah Muzzaffar al-Din, os protestos endureceram e os líderes religiosos islâmicos assumiram o papel principal da contestação e finalmente o Shah concordou, embora com a condição de que as leis aprovadas pelo Majlis (parlamento) tivesse de ser antes assinadas por este antes de entrarem em vigor.

    A partir do consentimento do Shah o processo de elaboração da constituição iniciou-se de imediato, constituição essa que foi elaborada tendo em linha de conta a da Bélgica, considerada na altura como a mais progressista da Europa, convocaram eleições nacionais para constituírem um Majlis com 200 assentos. A primeira sessão teve lugar a 7 de Outubro de 1906. A 30 de Dezembro do mesmo ano foi então adoptada a Constituição do Irão e uma semana depôs o Shah Muzzaffir al-Din morre.

    O novo monarca, o Shah Mohammed Ali, adoptou uma postura não cooperativa para com o Majlis. A juntar a isto, a ténue aliança que se verificava entre os líderes religiosos e os reformistas seculares começou a desfazer-se. Os mullahs que tinham apoiado o movimento reformista ficaram assustados com as exigências dos radicais, afirmando que estes tinham rejeitado a Lei do Profeta. A monarquia Qadjar explorou muito bem esta situação e conseguiu convencer muitos deles que os verdadeiros interesses residiam na monarquia.

    Confiante que a maioria dos líderes religiosos dos pais estavam do seu lado, o Shah iniciou uma campanha de terror e violência contra o Majlis. O Shah contou ainda com o apoio das potências imperiais – Grã-Bretanha e Rússia – que perceberam que o movimento reformista ameaçava a sua posição no país. Esta pressão conduziu ao término da Revolução constitucional, que durante cinco anos tentou aliar a tradição iraniana com a democracia moderna.

    Em 1907, a Grã-Bretanha e a Rússia assinaram, em São Petersburgo, um tratado que dividia a Pérsia entre si. A Grã-Bretanha assumiria o controlo das províncias do Sul, enquanto que a Rússia ficava com as do Norte. Uma faixa de terra entre as duas zonas foi estabelecida como neutra, significando isto que aí o governo persa poderia exercer a sua governação de forma autónoma, mas sem contudo poderem ir contra os interesses das suas potências ocupantes.

    Em 1917, após a Revolução Bolchevique, o governo russo renunciou à maioria dos seus interesses na Pérsia. Desde logo, os britânicos apressaram-se a preencher o vazio deixado pela nova URSS, e o petróleo afigurava-se como o centro dos seus interesses.

    Em 1919, os britânicos, cientes do alto valor deste novo recurso, impuseram um severo Acordo Anglo-Persa ao regime do Shah Ahmad. Este acordo permitiu a Londres assumir o controlo sobre o exército, tesouro público, o sistema de transportes e rede de comunicações do país. Este acordo constituiu um novo fôlego ao movimento nacionalista. Somando-se ao deflagrar da I Guerra Mundial, a grande maioria da população, vivendo em condições miseráveis, levou ao recrudescer do mesmo movimento em várias províncias.

    Durante o conflito, a Pérsia viu-se invadida em todos os quadrantes, mesmo procurando prosseguir uma política de neutralidade. Tal facto não é de estranhar, uma vez que eram muitos os problemas endógenos e exógenos, que aliando-se à sua importância geoestratégica e energética, deploráveis condições de vida, deficit orçamental e fraco poder político, tornaram-na um útil peão para a Entente Cordiale. Embora recebesse uma comissão militar alemã, a sondar a possibilidade de rebelar as forças armadas iranianas contra o domínio imperial britânico e russo, o que é facto é que a Pérsia permaneceu sob regime de “aluguer” aos interesses anglo-russos de ocupação militar do território, exploração dos seus recursos energéticos, e domesticação do aparelho estatal, face a franca dificuldades. Assim, criavam-se as condições para a emergência de um líder carismático que liderasse o desânimo geral contra a corrupção do governo do Shah e a excessiva intromissão de potências estrangeiras no seu território e nas suas riquezas naturais.

    O início da dinastia Pahlavi

    Seria através de Reza Khan, um corajoso coronel das Brigadas dos Cossacos (uma unidade altamente disciplina e bem treinada, fundada por oficiais russos que tinha como função principal zelar pelos interesses dos estrangeiros e da Corte Qadjar), que a dinastia Qadjar viria a ser derrubada. Assim, no dia 21 de Fevereiro de 1921, Reza e alguns dos seus oficiais conduziram cerca de 3.000 homens a Teerão onde prenderam o Primeiro-Ministro e todos os membros do seu Gabinete. Reza fez duas exigências ao Shah Ahmad: Sayyid Zia tinha de ser nomeado Primeiro-Ministro (um antigo jornalista); e ele próprio Comandante das Brigadas dos Cossacos. O Shah obviamente cedeu e concordou com ambas.

    O sucesso deste golpe teve como principais arquitectos as tropas britânicas aí estacionadas, cuja apreensão face a líderes tribais voláteis e não estabilizados resultou na tentativa de centralização do poder num Estado Persa mais forte e burocrático. Em Maio do mesmo ano, Reza forçou o Primeiro-Ministro a demitir-se do seu cargo, obrigando-o mesmo a exilar-se no estrangeiro. Pouco tempo depois, convenceu o próprio Shah a partir sob o pretexto de uma viagem devido a causas de saúde. Assim, em quatro anos, este ambicioso soldado tornava-se Primeiro-Ministro, Comandante do Exército e a figura carismática da nação persa.

    O apogeu foi atingido quando o Majlis, o Parlamento persa, declara em 1925 a dinastia Qadjar como extinta e oferece o Trono do Pavão a Reza Khan. O novo Shah anunciou então que a sua dinastia seria lembrada como a dinastia Pahlavi, designação esta derivada de uma língua que os Persas falaram antes da conquista do Islão no século VII d.C.

    O reinado do Shah Khan

    Eivado de um novo ímpeto nacionalista, a dinastia Pahlavi sob a égide de Reza Khan afigurava-se um marco histórico e muito desejado na história da Pérsia. Não só a dinastia Qadjar mostrara ser altamente maligna para o bem-estar económico, político e social do país, como permitira ainda o completo desvirtuamento dos valores e recursos persas perante os interesses estrangeiros, sobretudo britânicos e russos. Desta forma, importa analisarmos mais atentamente quais foram as políticas de nacionalização e reforma de Khan como imediato antecessor do Shah Mohammad Reza.

    Nas palavras de Stephen Kinzer, o Shah Khan “começou por aniquilar bandos de criminosos que aterrorizavam muitas regiões da Pérsia, e em seguida embarcou num formidável programa de construção que deu ao país novas avenidas, praças, estradas, fábricas, portos, hospitais, edifícios governamentais, ferrovias e escolas, tanto para rapazes como para raparigas. Criou o funcionalismo público do país, e o primeiro exército nacional em séculos. Introduziu o sistema de mérito, o calendário moderno, o uso de sobrenomes e o casamento e o divórcio civis. Sempre pronto a desprezar a tradição, impôs restrições ao vestuário tradicional, e proibiu que as caravanas de camelos entrassem nas cidades. Promulgou códigos jurídicos e fundou uma rede de tribunais seculares para os fazer cumprir. Em 1935, anunciou que não mais toleraria que o seu país fosse referido como Pérsia, uma palavra usada sobretudo pelos estrangeiros, insistindo com Irão – o nome pelo qual os cidadãos do país o designavam. […] O comércio era centralizado nas mãos do Estado e de um pequeno quadro de empresários leais. O próprio Shah tornou-se riquíssimo devido aos subornos obtidos das empresas estrangeiras, bem como à extorsão de dinheiro dos chefes tribais. Confiscou uma porção de tal modo grande de terras que, no auge do seu poder, era o maior terra-tenente do país.”

    Como podermos observar, esta pequena revolução assemelha-se àquela por Portugal experimentada no período posterior ao terramoto e maremoto de 1755, no qual o Marquês de Pombal foi a figura responsável pela reestruturação do poder do Estado na sociedade lusitana. Desta forma, Shah Reza Khan intuiu a premência que existia em modernizar e centralizar o aparelho governativo em Teerão, removendo não só a influência dos líderes tribais espalhados pela Pérsia, como reunindo em si todo um movimento reformista que lhe permitisse compensar o enorme atraso político-económico existente em relação ao estrangeiro. Assim participou activamente em todas as esferas públicas e privadas, forçando não só uma reconversão dos valores tradicionais da nação persa a modelos semelhantes ao dos ocidentais e países industrializados, como actualizando toda a estrutura institucional do país face a padrões dos seus maiores opositores – nos campos da banca, do comércio, das comunicações e transportes, infra-estruturas, direito, etc.

    Nesta óptica, torna-se curioso investigar sobre a admiração que Khan tinha face ao seu homólogo Kemal Atatürk na Turquia, cuja herança do Império Otomano ruído com a Grande Guerra, colocara Ankara em situação semelhante. Maioritariamente focado em reestruturar todo o aparelho governativo e em secularizar todas as esferas sociais da sua população, os projectos desenvolvidos por cada um dos governantes apresenta semelhanças incontornáveis. Por vezes apelidado de tirânico, outras de visionário, o que não podemos descurar é que os métodos pouco ortodoxos de Reza Khan reposicionaram o Irão novamente num dos mais importantes actores no Médio Oriente e sociedade internacional em geral, não só pela imensidão dos seus recursos energéticos, como pela própria natureza do seu regime e forma como lidava com uma população maioritariamente muçulmana, e entre esta, uma franca preponderância de shiitas.

    O futuro viria adivinhar uma continuação na prossecução desta Grande Estratégia Iraniana, com o seu filho e sucessor Mohammad Reza Pahlavi a ascender ao Trono do Pavão em 1941, em plena II Guerra Mundial. É sobre o segundo reinado desta dinastia que falaremos de seguida.


  • Prólogo

  • Introdução

  • O Irão da Pérsia aos Safávidas

  • O Islão na Pérsia

  • O Irão dos Safávidas ao Pahlavis

  • O Jogo do Petróleo

  • O Início da Relação Irão-Ocidente

  • O Irão na II Guerra Mundial

  • O Irão na Guerra-Fria

  • O Projecto Reformista do Shah

  • Um Desagrado Crescente

  • As Manifestações de Janeiro, 1978

  • O Incêndio de Abadan

  • A Sexta-feira Negra

  • Os Últimos Dias do Trono do Pavão

  • O Período Pós-Revolucionário

  • Conclusão e Bibliografia
  • A Revolução Islâmica - O Irão na Guerra-Fria

    Contextualização

    A Revolução Islâmica de 1979 não deverá ser entendida simplesmente como um fenómeno político estritamente interno, pois muitas das causas que levaram ao descontentamento generalizado prendem-se com condições conjunturais do sistema internacional no qual o Irão esteve inserido. Desta forma, afigura-se como uma análise de relevo aquela que venha trazer alguma luz sobre o relacionamento do Irão com as principais potências da época, sobretudo os EUA. Dessa análise esperamos obter um entendimento contextual sobre a conjuntura nos quais se desenvolveram os principais acontecimentos que levaram à Revolução de 1979, assim como a influência que o Shah recebeu do exterior para actuar desta ou daquela forma.

    O compromisso com os soviéticos

    O período do pós-II Guerra Mundial viria a trazer ao Irão, especialmente ao recém-nomeado Shah Mohammad Reza Pahlavi e ao seu Primeiro-Ministro Ahmad Qavam, uma nova era de desafios ao Irão. Com efeito, o legado a guerra fora especialmente pesado ao país e seus habitantes, considerando a importância que desempenhou na derrota dos alemães na frente oriental, que subsequentemente levou à sua derrota final em Berlim. Face aos compromissos assumidos nas Conferências de Teerão e Potsdam, entre os Três Grandes, de garantirem o recuo das tropas mobilizadas para o território iraniano e de reconhecerem a sua total independência, a ameaça soviética constituiu um entrave que colocou sérias controvérsias estratégias entre a URSS, EUA e Irão. Vejamos como.

    Com o final da II Guerra Mundial, as tropas de Estaline hesitavam em sair do Irão. Num conjunto de repúblicas que se estendia até ao Norte do Cáucaso, a permeabilidade das fronteiras aos ideais e influência de Moscovo era evidente. Ademais, era bem conhecida a perversão com que a ideologia marxista-leninista seduzia populações especialmente desfavorecidas em termos sócio-económicos, como se provou no pós-I Guerra Mundial, por isso importava desde logo assegurar a total independência e pleno desenvolvimento do Irão face ao expansionismo soviético. Como é óbvio, a Doutrina Truman veio defender exactamente isso, a intrínseca correlação entre a contenção da ameaça vermelha e a independência e desenvolvimento dos povos situados na órbita de Moscovo. No entanto, e face ao enorme desgaste inerente à vitória da guerra na frente europeia e do Pacífico, os EUA encontravam-se reluctantes em enveredar por um novo conflito com a aliada URSS, especialmente o um novo presidente na chefia dos destinos da superpotência – Harry Truman.

    Desta feita, Estaline aproveitou-se da relativa ingenuidade e contingências do novo presidente para forçar a sua presença na região, impelindo grupos subversivos soviéticos a penetrar nas províncias do Norte do Irão e aí desenvolverem actividades que visassem aproximar os governantes aos ideais marxistas-leninistas. Para tal, pequenos grupos de “doutrinadores” foram enviados para localidades relativamente pequenas e centros urbanos periféricos, pois aí existiam não só populações maioritariamente desfavorecidas, como também uma fraca implementação do poder central de Teerão. Simultaneamente, tropas soviéticas foram enviadas para o Azerbeijão e Arménia, alargando as fronteiras da URSS até ao Irão através do Cáucaso. O poder aumenta, e a margem de manobra dos iranianos e norte-americanos era reduzida.

    Assim, em Janeiro de 1946 era proclama a República Popular do Curdistão, que logo se aliou ao Azerbeijão, e assim fechou o círculo de alianças com a URSS, consolidando a influência soviética na região. Pela mesma altura, os EUA retiravam o último homem de território iraniano, causando um grave problema diplomático e estratégico para ambas as facções. Deveriam os EUA intervir militarmente em nome do Irão para responder à sua Doutrina Truman e conter a expansão soviética no Médio Oriente? Declararia o Irão guerra à URSS por ingerência nos seus assuntos internos e presença excessiva de tropas fronteiriças a Norte, que ameaçavam a integridade territorial do seu país? Tentar-se-iam vias diplomáticas para resolverem a crise?

    Ponderadas todas as possíveis situações de resolução, os resultados foram surpreendentemente pragmáticos e satisfatórios. O então Primeiro-Ministro Ahmad Qavam, cuja busca pelo poder tentava secundarizar aquele do Shah e assim afirmar-se como o legítimo líder do governo iraniano, negoceia com os soviéticos a concessão de contratos petrolíferos em troca do seu recuo militar do território e províncias do Norte. Esta simples proposta, que Qavam presumia ser vetada pelo Congresso do Irão, afigurava-se como uma engenhosa e hábil alternativa aos planos militares colocados sobre a mesa. Para reafirmar este interesse recíproco, contudo, os EUA fizeram saber através dos canais comunicacionais ainda existentes entre os Aliados que tencionavam mobilizar equipamento estratégico de médio e longo alcance para o Irão caso as tropas soviéticas não recuassem e respeitassem os acordos assinados em tempo de guerra. Entre esse equipamento contamos a existência de mísseis nucleares, bombardeiros de alta-altitude e longo-alcance, e contingentes militares para campanhas terrestres.

    Embora muitos autores considerem esta declaração mero bluff, o que é certo é que Estaline viu Qavam como um possível parceiro no Irão através do qual pudesse vir a estabelecer novos acordos e parcerias que trouxessem Teerão para a sua esfera de influência por meios pacíficos e consentimento. Assim, assinou prontamente a concessão proposta por Qavam e procedeu ao recuo das suas forças militares. Entretanto, o Congresso vetava o contrato e este não entrava em efeito, enquanto Washington aprofundava os seus laços com o Irão. Isto marcaria profundamente o futuro do país ao longo de toda a Guerra-Fria, à medida que o poder de Qavam diminuía, até ser substituído por ordens do Shah e apoio norte-americano. Contudo, começava uma relação de parceria que cedo iria ultrapassar as melhores previsões quer de analistas norte-americanos, quer de iranianos.

    De facto, essa cooperação viria a dar novamente frutos a favor do Shah quando se depara com outro líder da oposição, democraticamente eleito, mas anti-ocidental e anti-modernizante. A estratégia aplicada neste caso foi, eufemisticamente, bastante diferente.

    A Operação Ajax

    A data a ter em conta é 19 de Agosto de 1953. Esta data marcou de forma crucial a história do Irão, no qual, EUA e Inglaterra, através de um “ensaiado” Golpe de Estado ajudaram a expulsar a elite nacionalista que governava o país e que tinha os norte-americanos como seus aliados ideológicos. Mesmo que estas duas últimas palavras possam parecer incompreensíveis, a verdade é que até à data, os norte-americanos eram encarados com grande admiração e respeito, em virtude das inúmeras instituições sociais que ajudaram a criar no país.

    Em 1953, o Irão tinha como Primeiro-Ministro Mohamed Mossadegh, eleito em 1951, um homem dotado de uma grande dose de autoconfiança e sentimento nacionalista. Este era muito apoiado pelos iranianos em virtude das suas políticas sociais – defesa da liberdade religiosa, apoio aos direitos das mulheres, construção de habitações sociais, banhos públicos, … Era igualmente conhecido por ser extremamente honesto e impenetrável à corrupção. Foi eleito pela revista Time como “Homem do Ano” em 1951. Mossadegh sempre lutou pelo direito dos iranianos governarem o seu país em liberdade, sem ingerência externa. Este sempre fora o seu lema, antes e durante o seu mandato como Primeiro-Ministro traduzindo-se na prática na libertação da submissão para com a Grã-Bretanha, proprietária da Anglo-Iranian Oil Company (AIOC).

    A AIOC era uma companhia extremamente lucrativa que vendia o seu petróleo dez a trinta vezes mais acima do seu preço de produção. Tal facto tornava-a extremamente odiada no Irão.

    Quando Mossadegh se torna Primeiro-Ministro em 1951, cumpriu o seu grande objectivo político, a nacionalização da AIOC transformando-a na Iranian Oil Company. Este acontecimento semeou a ira nas hostes inglesas, que, a parir de então, tomaram como objectivo fulcral a recuperação da sua concessão petrolífera. Elaboraram então toda uma estratégia para depor Mossadegh, designada de Operação Bota.

    No entanto, precisavam do apoio norte-americano para que a operação não falhasse e não suscitasse qualquer desconfiança. À data, 1952, era Harry Truman quem ocupava o cargo de Presidente dos EUA, e este sempre se opusera ao uso da força contra o Irão. Temia que qualquer tipo de acção contra este país instigasse outros países do Médio Oriente contra ingleses e americanos. No entanto, esta atitude mudou radicalmente em Novembro de 1952 com a eleição de Dwight Eisenhower.

    Por forma a obterem o apoio de que necessitavam, o governo inglês falseou a tese tradicional que constituía no derrube de Mossadegh, dado que este nacionalizara propriedade inglesa, e decidiram antes dar ênfase à ameaça comunista no Irão.

    O Irão possuía uma enorme riqueza petrolífera, uma grande proximidade geográfica com a URSS, um Partido Comunista activo e um Primeiro-Ministro nacionalista. Os EUA encararam então a possibilidade de o país cair na esfera comunista. Esta tese foi rematada com a subsequente substituição de Mossadegh por um Primeiro-Ministro pró-Ocidental. Este remate captou desde logo o interesse de Eisenhower pondo assim em marcha a Operação Ajax.
    A Operação Ajax foi arquitectada, sobretudo pelos EUA e pela Inglaterra, no entanto, o papel principal coube à CIA e a Kermit Roosevelt, que, além de ser neto de Theodore Roosevelt, era o coordenador operacional no terreno. Como é óbvio, e à semelhança de toda esta operação, agia de forma camuflada.

    O plano da Operação Ajax visava uma intensa campanha contra Mossadegh lançada pela CIA, manipulando a opinião pública iraniana, em mesquitas, imprensa e nas ruas. Ao general Fazlollah Zahedi, o homem escolhido para substituir Mossadegh, cabia a função de subornar alguns oficiais e militares de modo a ficarem a postos para qualquer tipo de acção militar caso esta fosse necessária. Nem os deputados do Majlis (Parlamento iraniano) foram descurados, sendo muitos deles igualmente subornados.

    Enquanto isso, pagava-se a criminosos para lançarem ataques sobre líderes religiosos de modo a parecerem ter sido ordenados por Mossadegh – conhecido pelo seu secularismo.

    Em meados de Agosto de 1953, Kermit Roosevelt e os seus agentes iranianos encontravam-se prontos para entrar em acção. Juntos, tinham conduzido o Irão à beira do caos. Jornais e líderes religiosos clamavam pela cabeça de Mossadegh. As ruas de Teerão eram autênticos campos de batalha organizados pela CIA.

    A data inicial do golpe era 15 de Agosto, no entanto, uma fuga de informação levou ao falhanço da operação. Foi então a 19 de Agosto, apenas 4 dias depois, que esta armadilha política alcançou os seus objectivos. Mossadegh foi então preso (condenado a 3 anos de prisão seguido de um encarceramento em prisão domiciliária até 5 de Março de 1967, data da sua morte) e substituído por Fazlollah Zahedi através de um firmão (decreto) emitido pelo Shah Mohammed Reza Pahlavi, também ele alvo de suborno por parte de K. Roosevelt. Este último contava com o grande respeito que os iranianos detinham pelo poder real, uma tradição antiga, para que não questionassem a legalidade de tal documento.

    A Operação Ajax foi assim o primeiro passo em direcção à revolução iraniana de 1979. Tanto ingleses com americanos não previram que o Shah reunisse tanta força e que a usasse de forma tão tirana, nem que falhassem na tentativa de o obrigarem a seguir um rumo razoável.

    A estratégia “Dois Pilares”

    Assegurada a subserviência iraniana aos interesses norte-americanos, as respectivas políticas externas foram eficazmente alinhavadas em quase todas as matérias que diziam respeito aos dois parceiros. Assim sendo, não admira que vejamos uma permanência de interesses e relações que se perpetua ao longo de várias administrações norte-americanas, desde Truman na década de 1940 até a Jimmy Carter em 1979. O que por vezes falha no estudo das relações EUA-Irão é um entendimento regional desta aliança.

    Inserida num ambiente internacional mais abrangente de oposição Este-Oeste, é de fácil apreensão a importância que o Irão desempenhava no jogo estratégico de alianças e ameaças na região do Médio Oriente. Em plena Guerra-Fria, como viria George Kennan defender na sua doutrina do Containment, os EUA necessitavam de encetar esforços redobrados para impedir a proliferação da ideologia comunista nos continentes Europeu, Africano e Asiático, e o Médio Oriente, como região vital aos seus interesses e de todo o bloco ocidental, e até mesmo soviético, constituíam uma arena de especial conflitualidade. Assim, a estratégia dos “Dois Pilares”assentava numa cooperação trilateral entre os EUA, Irão e Arábia Saudita, coligação que asseguraria não só a estabilidade regional como o desenvolvimento sustentável e próspero dos três principais actores no Médio Oriente.

    Desta forma, Washington delegava nos seus aliados muçulmanos mas tendencialmente modernizantes e pró-ocidentais, responsabilidades mais pragmáticas como a liberalização dos seus mercados e política interna, redução da influência e poder do clero islâmico, melhoramento das suas esferas jurídicas para garantirem uma maior liberdade, e direitos e deveres mais equilibrados e susceptíveis de atrair investimento internacional, estrangeiros e desenvolvimento da iniciativa privada, etc. O objectivo último era não só assegurar o contínuo abastecimento do Ocidente das suas tão desejadas fontes energéticas em petróleo e gás natural provenientes dos dois países com as maiores reservas de toda a região, como de estenderem eficazmente a sua influência para efeitos de contenção da ameaça soviética. Num clima de Mutually Assured Destruction (MAD), a deterrence e segurança internacionais encontravam-se debaixo da responsabilidade global da potência EUA, como podemos constatar com a celebração do Pacto de Bagdad, de 1955.

    O binómio armas-petróleo

    Embora já tenhamos referido anteriormente a importância que o petróleo teve na economia e política iranianas, e especialmente no seu relacionamento com os EUA, devemos contudo enaltecer a importância que o binómio armas-petróleo teve na política externa norte-americana durante toda a Guerra-Fria face ao Irão. De facto, nem sempre se prosseguiu com esta concepção inter-relacionada de segurança militar vs. segurança energética, pois a alteração da conjuntura internacional forçou diversos líderes a pensar de formas diversas as potencialidades que poderiam advir de uma parceria mais profunda e multifacetada.

    Como forma de assegurar as boas relações com o Irão, e satisfazendo também interesses próprios para alimentar a sua indústria de defesa enquanto prosseguia a corrida armamentista contra Moscovo, os EUA venderam e patrocinaram a transformação do Irão num autêntico Estado policial no qual o Shah, detentor da maior fortuna e poder no país, detinha também o monopólio das compras de armas ao estrangeiro, onde os EUA eram um aliado preferencial e quase exclusivo. Assim, não só assegurava a concentração de poder na sua pessoa, como mantinha a unidade política dentro do seu círculo político interno coesa e longe de tentativas subversivas contra o regime monárquico.

    É ainda de notar que ao longo que as dissensões populares foram ganhando intensidade, assim observamos a um maior gasto na despesa, chegando a orçamentos anuais de 4,5 biliões de dólares, uma soma abismal para aquela altura, mas suportável através das divisas provenientes do petróleo e empréstimos realizados à Federal Reserve. Assim, e utilizando dados contidos na obra já referida do Professor Doutor Hélder Santos Costa, eis as compras do Shah em termos de equipamento militar na década de 1970:

    Oitenta F-14, 2 biliões US$
    169 caças Northrop F-5E/F. 480 milhões US$
    209 caças-bombardeiros MC Donnell-Douglas F-4 Phantom, 1 bilião US$
    160 General Dynamics F-16, 3,2 biliões US$
    7 aviões de vigilância com radar Boeing E-3A Awacs, 1,2 biliões US$
    202 helicópteros para vasos de guerra Bell AH-1J Cobra, 367 milhões US$
    326 helicópteros para transporte de tropas Bell Model-214, 496 milhões US$
    25.000 mísseis anti-tanque Dow e Dragon, 150 milhões US$
    4 contra-torpedeiros DD-963 Spruance, 1,2 biliões US$

    A esta enorme transferência de poder bélico somou-se uma grande permuta de pessoal técnico especializado que compuseram e treinar os altos quadros iranianos das Forças Armadas, em todos os três ramos mas com especial incidência no Exército e Força Aérea. A salvaguarda dos mares encontrava-se à completa responsabilidade do CENSTRATCOM (Central Strategic Command), ou comando estratégico da marinha norte-americana para o Médio Oriente. Com a renúncia do governo britânico ao cumprimento das suas anteriores responsabilidades imperiais, em 1971, os EUA herdam assim toda a exclusividade de defesa do mundo Ocidental contra o império soviético, aprofundando ainda mais e sob as direcções de Richard Nixon e Henry Kissinger, então Secretário de Estado, a permissão do Shah aos stocks armamentistas do EUA. Os acordos estabelecidos entre estes locutores chegaram até a permitir ao Rei dos Reis a compra de qualquer equipamento militar norte-americano, à excepção do arsenal nuclear, o que logo suscitou o desagrado do Congresso, que não conseguiu reverter o processo por possuir uma maioria republicana.

    Entre um misto de salvaguarda e aliança no plano internacional, e uma completa autonomia no nível interno, a relação EUA-Irão desenrolou-se no melhor interesse de ambos numa conjuntura alargada de oposição ideológica entre o capitalismo e o comunismo, na qual o Irão desempenhou um papel fundamental como baluarte pró-ocidental na estabilização do Médio Oriente. Esse seria um papel que sofreria uma reviravolta de 180º aquando da Revolução Islâmica, pois a pressão de Carter sobre o regime do Shah para se liberalizar, e a subsequente aquisição de maior poder na poder, levaria ao sucesso do processo revolucionário levado a cabo por Khomeini. O mundo mudaria em 1979, e com ele todo o mundo muçulmano, que agora subia para o palco da ribalta e para um crescente protagonismo nas relações internacionais até ao presente.

    Mas não esquecendo esta contextualização, avancemos agora para o projecto reformista introduzido pelo próprio Shah, e razão pela qual este governante sempre fora designado de pró-ocidental e modernizante, procurando eliminar pela raiz e definitivamente os apegos religiosos da sua população ao Islão, que considerava contra-producente e redutor da identidade nacional iraniana a uma comunidade de crentes mal definida espacialmente e causa de grandes distúrbios. Isto, contudo, sem renegar completamente a sua própria crença no Profeta e em Allah, embora relegando essa espiritualidade para o recanto da sua vida privada. Era exactamente esse, aliás, o intuito último do Shah, separar completamente as esferas política e religiosa, pois achava a sua combinação uma mistura potencialmente explosiva para o país.


  • Prólogo

  • Introdução

  • O Irão da Pérsia aos Safávidas

  • O Islão na Pérsia

  • O Irão dos Safávidas ao Pahlavis

  • O Jogo do Petróleo

  • O Início da Relação Irão-Ocidente

  • O Irão na II Guerra Mundial

  • O Irão na Guerra-Fria

  • O Projecto Reformista do Shah

  • Um Desagrado Crescente

  • As Manifestações de Janeiro, 1978

  • O Incêndio de Abadan

  • A Sexta-feira Negra

  • Os Últimos Dias do Trono do Pavão

  • O Período Pós-Revolucionário

  • Conclusão e Bibliografia
  • A Revolução Islâmica - O Irão na II Guerra Mundial

    Contextualização

    Sendo altura de abordarmos a inserção conjuntural do Irão na sociedade internacional ao longo de todo o período que abrange a nomeação do Shah Mohammad Reza Pahlavi para o Trono do Pavão até ao seu exílio em 1978, e subsequente ascensão do Ayatollah Khomeini enquanto líder da Revolução Islâmica e chegada a Teerão a 1 de Fevereiro de 1979, teremos forçosamente que referir qual o seu papel durante a II Guerra Mundial. Não só foi um evento internacional incontornável em qualquer referência histórica acerca do passado do Irão no século XX, como constituiu uma importante viragem na condução da sua política externa e relacionamento com o exterior. É sobre estes e outros tópicos que falaremos de seguida.

    Como já foi referido em capítulos anteriores, o Irão partilha de uma história especialmente conturbada ao longo de dois séculos claramente desfavoráveis à nação iraniana. Desde logo, a alienação sob os Qadjares e expropriação com o Shah Reza Khan vão contribuir para uma ampla vulnerabilidade e dependência face aos interesses externos, encabeçados sobretudo por Londres e Moscovo. Durante o período designado de Grande Jogo, segundo acepção de George Kennan, que opôs os interesses britânicos aos russos pela dominação da Ásia Central durante o século XIX, a então Pérsia pertencia inequivocamente à esfera de influência da Grã-Bretanha, da qual recebia apoio financeiro, militar e político para fazer face aos seus problemas internos, e assim projectar um bloco de contenção face ao expansionismo moscovita. Não obstante, e perante a ameaça alemã no dealbar do século XX, a lógica doutrinal do Grande Jogo foi substituída por uma de maior proximidade e cooperação entre as duas grandes potências, na perspectiva de anularem os evidentes e anunciados projectos de Weltpolitik do kaiser Guilherme II.

    Assim sendo, o Acordo Anglo-Russo de 1907 vai estender o período de domínio estrangeiro sobre o território e aparelho político, forçando os iranianos a uma autonomia tolerável na cintura meridional da Pérsia, face aos domínios russo e britânico, a Norte e Sul respectivamente. Com a II Guerra Mundial, a mesma realidade apenas tende a exacerbar-se. Desta forma, é importante definirmos dois momentos históricos que marcaram profundamente o destino do Irão neste conflito: o período anterior e posterior à entrada dos Estados Unidos da América, na sucessão do ataque japonês a Pearl Harbor em Dezembro de 1941.

    Nesta óptica, o Irão pré-1942 é um completamente governado por Londres e Moscovo, capitais que utilizavam o seu território para transporte de equipamento e tropas contra a Afrika Korps de Rommel, e a investida de Hitler no Leste Europeu. Contudo, este não era um alinhamento tradicional ou voluntário, bem pelo contrário. Era conhecida a simpatia que o Shah Reza nutria pela doutrina ideológica de Hitler, desde logo assente num fundamentalismo rácico dos Arianos sobre os demais povos, descendência essa que era tida em grande estima pela elite iraniana. Aliás, existem alguns autores, incluindo Kenneth Pollack, que defendem que a alteração do nome Pérsia – terra dos Parsa –, para Irão – terra dos arianos -, deveu-se em muito a esta noção de superioridade dos Arianos e comunhão natural de interesses entre o Shah e Hitler. Assim, à semelhança do que os Qadjares fizeram ao atraírem a atenção da Grã-Bretanha a favores petrolíferos como forma de se aproximarem a uma potência “distante” contra um inimigo “próximo”, que era a Rússia, também durante os antecedentes e período conflitual da II Guerra Mundial assistimos a inúmeras tentativas do Shah Khan em aproximar-se da Alemanha face à intromissão britânica e soviética.

    Como exemplo desta afinidade, diz-se que a estratégia alemã para o Norte de África e região do Cáucaso visava estabelecer laços directos com o Irão, que assim se aliaria e estenderia o raio operacional das potências do Eixo numa dimensão verdadeiramente mundial e multidimensional. Potenciada desde logo pelo seu posicionamento geoestratégico, a posição do Irão poderia provar ser o factor de mudança geopolítica tão ambicionado por Hitler. A confirmar estes intuitos, enviou milhares de conselheiros, técnicos, engenheiros, empresários e outros especialistas para a capital e cidades vizinhas, preparando claramente uma futura recepção das tropas nazis, com vista a expulsar a presença soviética e britânica dos territórios e restaurar assim a plena independência do Irão.

    Não obstante este ambicioso conceito estratégico, a influência da Grã-Bretanha e União Soviética fez-se sentir para desilusão de Reza Khan. Não só viu o seu alinhamento do o Reich inviabilizado, como as pressões e ocupação estrangeira aumentaram em fluxo e diversidade. Quando em Agosto de 1941 as forças soviéticas e britânicas forçam o Shah a expulsar toda e qualquer presença alemã no seu território, deparam-se com um líder hesitante e receoso em abdicar novamente de uma parte vital da sua soberania a líderes externos. Consequentemente, pelo seu não cumprimento desta prerrogativa, as mesmas tropas viriam a ocupar oficialmente o território, forçando o Shah a exilar-se em apenas duas semanas de combates. Era a última estocada do primeiro governante da dinastia Pahlavi. As suas reservas petrolíferas eram totalmente aproveitadas para a manutenção e apoio das forças aliadas na Europa; os caminhos-de-ferro tinham sido monopolizados para transporte de tropas, munições e outros equipamentos militares para a URSS; a produção agrícola iraniana fora direccionada para os vários contingentes estrangeiros aí estacionados; e demais recursos tardavam em chegar às mãos dos iranianos. O desagrado, portanto, era generalizado e constituía um desafio açambarcante para o herdeiro Shah Mohammad Reza Pahlavi. O futuro adivinha tempos difíceis.

    A entrada dos EUA na guerra

    A declaração de guerra por parte de Washington, já em 1942, foi visto no Irão como um acto que traria um novo fulgor aos interesses nacionalistas iranianos, e um redobrado apoio às forças governamentais do Shah que assim veria a sua dependência face à Grã-Bretanha e URSS reduzida. Vingada a sua decepção face ao alinhamento alemão, a participação dos EUA asseguravam uma vitória previsível e acumulação de alguns ganhos de pós-guerra que usualmente sucedem estes grandes acontecimentos. Ademais, a nomeação do novo Shah, Mohammad Reza Pahlavi de nome, adivinhava alguns contornos que poderiam beneficiar o Irão, caso este soubesse jogar o seu alinhamento com os norte-americanos melhor com que o fez com os soviéticos e britânicos.

    Esta aposta provar-se-ia proveitosa, mas não sem os seus senão. Pela Declaração Tripartite, de Janeiro de 1942, os EUA sob a presidência de Franklin Delano Roosevelt comprometiam-se a, juntamente com a Grã-Bretanha e União Soviética, a devolver a completa independência ao Irão findo o conflito, e a retirarem as suas tropas num período de seis meses subsequentes ao fim das hostilidades. Numa primeira análise, esta pareceu uma afirmação indesmentível dos projectos que os Aliados tinham para o Irão no cenário posterior à guerra. Não obstante este primeiro optimismo, alguns iranianos logo começaram a expressar as suas dúvidas em relação ao aparente filantropismo norte-americano, conscientes que estava da lição aprendida décadas antes com a entrada da Grã-Bretanha sob as boas graças dos governantes. Desta vez, o planeamento externo teria que ser outro, um mais pragmático e baseado em sucessos mensuráveis e materialmente exequíveis.

    Com efeito, através do seu programa de apoio aos exércitos soviéticos, o Lend-Lease, o Irão transformou-se num centro comunicacional fundamental na cooperação EUA-URSS. Através do seu território chegaram a transitar entre 25-30% de todo o apoio militar e logístico que Roosevelt prestou a Estaline, especialmente na época de crucial importância que foi a invasão alemã da Rússia na segunda metade de 1941. Deveras fragilizado, quer militar, quer economicamente, foi através do Irão que o ressurgimento anímico e material da URSS foi injectado, apoio esse que possibilitou a derrota das tropas alemãs na célebre Batalha de Estalinegrado, considerado o volte-face da guerra. Apesar de tudo, este sucessivo relativo implicou o prolongamento da alienação das infra-estruturas, produtividade e aliança iraniana em relação aos Aliados, pois todo o país encontrava-se como que alugado à coligação anti-eixo.

    Pior ainda, o futuro próximo do Irão durante a II Guerra Mundial não viria a melhorar. Celebrada a aliança e o fluxo EUA-URSS, aqueles apenas mobilizaram tropas para o território iraniano em Dezembro de 1942. Isto significou um posterior aumento da alienação já existente, pois não só eram todos os aparelhos governativos influenciados pelos britânicos e soviéticos substituídos pelos recém chegados norte-americanos, como a experiência mútua era muito ténue quando comparada as duas outras potências, como ainda a intromissão norte-americana no Irão fora multiplicada. Agora, tropas dos EUA treinavam as Forças Armadas Iranianas, coordenavam directamente o relacionamento iraniano com a URSS e instruíam uma nova elite política nas funções organizacionais segundo modelos tipicamente liberais, ocidentais e capitalistas. A própria economia era administrada por um único indivíduo, Arthur Millspaugh, antiga figura de destaque durante o regime de Reza Khan e cujos resultados ficaram muito aquém do esperado. Mais uma vez, as expectativas colocadas sobre a responsabilidade de Millspaugh foram logo deitadas por terra, quando o bem-estar económico e social da nação iraniana em nada melhorou, assistindo ainda a consideráveis retrocessos em matérias de crescimento, produtividade e distribuição de riqueza. De certa forma, uma tentativa bem mais profícua dos projectos reformistas do Shah Reza Khan.


    Um alinhamento promissor

    Os eventos levariam os EUA a reconhecer o valioso contributo do Irão na luta contra as potências do Eixo, e assim reafirmaram o seu compromisso no desenvolvimento e crescimento do seu novo aliado no Médio Oriente assim que o conflito acabasse. Por ocasião da Conferência de Teerão, em Dezembro de 1943, esta foi a declaração realizada por Estaline, Churchill e Roosevelt na capital iraniana. O compromisso por parte de Washington era tão consciente na política externa norte-americana que logo fizeram acompanhar os desenvolvimentos políticos do Shah e Majlis com um destacamento do seu serviço de informação e segurança, o American Office of Strategic Services, antecessor da Central Intelligence Agency. Esta operação teria o propósito de preparar a opinião pública iraniana, assim como o aparelho governativo, ao desenvolvimento de uma parceria multifacetada com os EUA uma vez acabada a guerra, pois a nova ordem internacional permitia vislumbrar alguns contornos de tensão entre alguns dos Aliados, especialmente entre norte-americanos e soviéticos.

    O Shah Mohammad Reza, nomeado em 1941 após a saída do seu pai, mantém ao longo destes desenvolvimentos um baixo perfil em matérias de política internacional, pois sabia que teria que acomodar-se ao seu regime interno para daí extrair o poder e vantagem que lhe permitiria negociar o pós-guerra iraniano com uma maior capacidade negocial face aos seus aliados. Era isso mesmo que viria a acontecer em Potsdam, em Agosto de 1945, conferência reunida entre Estaline, Truman e Attlee que reivindicaria a imediata retirada das tropas estrangeiras de território iraniano. Marcando o fim da II Guerra Mundial, esta foi uma conferência que influenciaria a afirmação do Shah como legítimo e proeminente figura governante do Irão durante a Guerra-Fria, à volta do qual se desenlaçariam numerosos episódios fulcrais nessa oposição Leste-Oeste.


  • Prólogo

  • Introdução

  • O Irão da Pérsia aos Safávidas

  • O Islão na Pérsia

  • O Irão dos Safávidas ao Pahlavis

  • O Jogo do Petróleo

  • O Início da Relação Irão-Ocidente

  • O Irão na II Guerra Mundial

  • O Irão na Guerra-Fria

  • O Projecto Reformista do Shah

  • Um Desagrado Crescente

  • As Manifestações de Janeiro, 1978

  • O Incêndio de Abadan

  • A Sexta-feira Negra

  • Os Últimos Dias do Trono do Pavão

  • O Período Pós-Revolucionário

  • Conclusão e Bibliografia