17 abril, 2008

A Revolução Islâmica - O Incêndio de Abadan

O primeiro dos mais importantes marcos históricos da Revolução Islâmica de 1979 é inquestionavelmente o célebre Incêndio de Abadan, de Agosto de 1978. À semelhança da Sexta-feira Negra, outro evento de igual ou maiores proporções em termos de consequências políticas e sociais, este incêndio teve a particularidade de reflectir o state-of-the-art em matéria de eventos e percepções revolucionárias e do regime da época. Com efeito, este evento ocorrido em Agosto viria a ser descrito como o primeiro passo irrevogável – os dados estavam lançados e pendiam inexoravelmente a favor de uma revolução.

No entanto, antes de avançarmos com uma análise mais pormenorizada deste incidente/acidente, é necessário referirmos algumas precisões contextuais que melhor nos ajudem a compreender a completa realidade existente na altura. Jamshid Amouzegar, Primeiro-Ministro, mostrava sinais de fraqueza e incapacidade em lidar não só com as manifestações, como com as próprias reivindicações da oposição. Optando por uma estratégia de dupla inacção, não recorrendo eficazmente ao seu avançado aparelho repressivo apoiado numas forças armadas e polícia secreta extremamente desenvolvidas, e totalmente incapaz de reunir uma posição de autoridade sobre a qual fizesse rodear as negociações com as elites religiosas e poucos representantes da oposição laica ainda existente, este transformou-se noutra peça que o Shah removeria numa desesperada tentativa de realizar concessões fortuitas o suficiente para demover os revolucionários.

Consequentemente, o Incêndio de Abadan teve como principais resultados antagonizar a divergência entre o regime e a oposição, assim como permitir a ascensão de uma facção religiosa radical que tomou as rédeas do movimento revolucionário daí em diante. Situada no Condado de Abadan, na ilha do mesmo nome, a cidade de Abadan localizada no Sudoeste do território iraniano era um palco relativamente secundário das principais manifestações dos revolucionários face ao regime do Shah Pahlavi. Não só geograficamente distante da capital Teerão, encontra-se também com bons acessos ao Golfo Pérsico e dos vizinhos Iraque e Kuwait. Por estes e outros motivos, assistimos ao longo do ano de 1978 algum movimento fronteiriço de pessoas, sobretudo elementos mais moderados da oposição, que antevia um exacerbar das tensões e subsequente crescimento dos conflitos e manifestações que poderiam originar situações de ruptura entre o regime instalado e os revolucionários. Desta forma, poderemos afirmar que a população residente em Abadan não constituía um dos vários centros nevrálgicos do Irão revolucionário, pelo menos não em tão larga medida como a cidade santa de Qom, Teerão, Isfahan ou outras.

Assim sendo, ninguém adivinhou o que iria suceder-se na noite de 19 de Agosto de 1978. Numa das várias salas de cinema do centro urbano, largas famílias assistiam a um filme que, segundo alegações oficiais, impelia o povo iraniano a seguir os costumes e modos ocidentais, chegando a ofender os fiéis do Profeta pela injustiça, corrupção, materialismo e decadência aí perpetrados. Perante tamanha ofensa, vários autores descrevem uma sucessão de acontecimentos cujos contornos e nuances apenas estimularam o crescente maniqueísmo entre as facções moderada e radical da oposição, enquanto esta exercia uma pressão esmagadora sobre aquela.

Após a entrada alguns indivíduos suspeitos dentro das instalações do cinema, alegadamente pertencentes a uma organização religiosa militante, as autoridades detectaram a deflagração de um pequeno incêndio num dos cantos opostos à entrada principal. Tivesse a sua proporção sido mais considerável, o alvoroço causado na audiência certamente teria surgido mais atempadamente e possivelmente evitado o desastre que se seguiria. Danificando imediatamente o sistema de ar condicionado de todo o edifício, assim contribuindo para a rápida diminuição do oxigénio em circulação, e propagado pelos materiais altamente inflamáveis como carpetes, coberturas de paredes, cadeiras e material electrónico, o fogo logo se espalhou pelos bastidores em direcção às diversas salas, agudizando o pânico generalizado que entretanto se apossara das pessoas. Para dificultar a situação, a polícia de Abadan entretanto chamada ao local devido à ocorrência, opta por trancar os portões de forma a evitar a fuga do(s) incendiário(s), presumivelmente a monte.

De forma ainda mais dramática, um pequeno destacamento de bombeiros demorara cerca de vinte minutos a deslocar-se até ao local, contribuindo fatidicamente para a morte de 477 pessoas, incluindo mulheres e crianças apanhadas desprevenidas entre o fumo e o fogo que se alastraram por quarenta minutos. Alega-se que a posição do fogo foi premeditada pois permitia aos incendiários não só fugir, como potenciar os danos ao afectar directamente o sistema de ar condicionado e armadilhar a audiência pela redução dramática do oxigénio, forçando-as a um sono involuntário e que resultou na sua morte por queimaduras.

Paralelamente ao Incêndio de Abadan, geraram-se movimentos de opiniões de tal forma abrangentes e difusos que geraram um mal-estar genérico entre a população, razão imediata do exacerbar das reivindicações e manifestações que entretanto se realizaram. Por esta razão, alguns críticos afirmam que os incendiários actuam a soldo de algumas elites shiitas que logo aproveitaram o incidente para acusar o Shah de orquestrar aquele que é o terceiro ataque terrorista mais mortífero da História, antecedido pelos ataques do 11 de Setembro de 2001 às Torres Gémeas e os ataques bombistas de Kahtaniya de 2007. Estas acusações ganham fundamento quando interpretamos as prontas afirmações de alguns clérigos quando afirmam que agentes da Savak foram os principais responsáveis, conluiados com os agentes da polícia metropolitana e bombeiros de Abadan sob a coordenação do próprio Shah. Se assim fosse, o incêndio teria sido a última gota de água de um regime em total decadência e ilegitimidade face à sua população, assim justificando um rápido aumento das actividades revolucionárias com vista ao derrube definitivo do Shah Reza e da sua pandilha de assassinos e corruptos.

Não obstante, não podemos descurar o facto de também poder existir uma remota possibilidade de terem sido as próprias forças governamentais a organizarem o incêndio com o intento de assassinar alguns dissidentes aí reunidos para verem o filme “O Veado”, aclamado pelas suas duras críticas ao governo numa época em que Teerão controlava toda a indústria de entretenimento, e na qual a censura vingava em todos os meios de comunicação. Assim, trazendo a tragédia a uma província num canto remoto do país, provar-se-ia o poder coercivo do amplo aparelho policial e militar do Shah, patrocinado por dólares norte-americanos, e determinado em erradicar toda a oposição política ao seu vulnerável governo. A título de curiosidade, celebrava-se nesse dia a reinstalação do Shah no comando supremo do país após o golpe de Estado de 1953, o qual depôs Mossadegh.

As acusações perpetuam-se até à actualidade pois nenhuma evidência foi cabalmente analisada para que esse negro capítulo da história da Revolução Islâmica seja definitivamente verídico e permita desmascarar o verdadeiro intuito com que um pequeno fogo numa sala de cinema viesse a matar tantas famílias e a mudar o destino de uma nação. Nos dias subsequentes, milhares de pessoas choravam as vítimas nas ruas, destruindo tudo pela sua passagem e prolongando o período no qual se atearam fogos a cinemas e clubes nocturnos, claras afrontas à doutrina e costumes islâmicos introduzidas pelas políticas modernizantes do Shah.
Apesar de tudo, este não seria o único evento de tais proporções, pois logo no mês subsequente assistiríamos a outro cujas repercussões comprometeram a posição do regime sem qualquer hipótese de retrocesso.

Há, pois, que ressalvar duas importantes lições do Incêndio de Abadan no Cinema Rex. Em primeiro lugar, este incidente demonstrou o fulgor religioso com que algumas elites shiitas encaravam os malefícios do regime monárquico, fundamentos os quais promoveram com especial premência as suas reivindicações para que fosse implementada uma verdadeira sociedade islâmica sob a sua liderança, e na forma de uma república islâmica. Em segundo lugar, Abadan teve a nefasta consequência de fragilizar a oposição moderada e hostilizar a opinião pública face ao Shah Pahlavi, permitindo o avanço da oposição religiosa radical e compromisso de todo o movimento revolucionário à subordinação de ideais islâmicos shiitas encabeçados pelo Ayatollah Khomeini. Num artigo publicado pela revista Time, existem ainda críticas relativamente aos líderes shiitas radicais que, debaixo de algumas acusações, demonstraram um papel passivo com vista a possibilitar o crescente radicalismo a operar em cada vez mais províncias. Khomeini, cujo silêncio era sinal evidente de um plano mais abrangente para minar a legitimidade do Shah, era então acusado de receber apoio indirecto dos comunistas soviéticos que viam no líder espiritual uma pedra angular capaz de comprometer a posição dos EUA na região.

Foi, portanto, um severo golpe para o regime que logo de seguida teria que substituir novamente o seu Primeiro-Ministro para uma pessoa de moderados intuitos e políticas, chamado Sharif-Emami.


  • Prólogo

  • Introdução

  • O Irão da Pérsia aos Safávidas

  • O Islão na Pérsia

  • O Irão dos Safávidas ao Pahlavis

  • O Jogo do Petróleo

  • O Início da Relação Irão-Ocidente

  • O Irão na II Guerra Mundial

  • O Irão na Guerra-Fria

  • O Projecto Reformista do Shah

  • Um Desagrado Crescente

  • As Manifestações de Janeiro, 1978

  • O Incêndio de Abadan

  • A Sexta-feira Negra

  • Os Últimos Dias do Trono do Pavão

  • O Período Pós-Revolucionário

  • Conclusão e Bibliografia
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