26 abril, 2008

Um Sermão por demais actual

Apontamentos do Padre António Vieira
Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água; e, em vendo, o peixe arremete cego a ele e fica preso e boqueando até que assi suspenso no ar, ou lançado no convés, acaba de morrer. Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida! Dir-me-eis que o mesmo fazem os homens Não vo-lho nego. Dá um exército batalha contra outro exército, metem-se os homens pelas ponta dos piques, dos chuços e das espadas, e porquê? Porque houve quem os engodou e lhe fez isca com dous retalhos de pano. A vaidade, entre os vícios, é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens. E que faz a vaidade? Põe em isca nas pontas desses piques, desses chuços e dessas espadas dous retalhos de pano, ou branco, que se chama hábito de Malta, ou verde, que se chama de Avis, ou vermelho, que se chama de Cristo e de Santiago; e os homens, por chegarem a passar esse retalho de pano ao peito, não reparam em tragar e engolir o ferro. E depois disso, que sucede? O mesmo que a vós. O que engoliu o ferro, ou ali ou noutra ocasião, ficou morto, e os mesmos retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar outros."

"...a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos. E não só diz que o comem de qualquer modo, senão que os engolem e devoram; qui devorant. Porque os grandes que têm o mando das cidades, e das províncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos, senão que devoram e engolem povos inteiros: quid devorant plebem meam. E de que modo o devoram e comem? Ut cibem panis: não como os outro comeres, senão como pão. A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne há dias de carne, e para o peixe dias de peixe, e para as frutas diferentes meses no ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come; e isto é o que padecem os pequenos: são o pão quotidiano dos grandes; e assi, como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem..."

In Sermão de Santo António aos Peixes, de Padre António Vieira (1654)
Como passados quase quatro séculos, tal raciocínio se mantém tão actual. Dá que pensar...

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